Ações e Palavras, por Izaías Almada

Ações e Palavras

por Izaías Almada

O jornal PÚBLICO, um dos maiores jornais senão mesmo o maior jornal português da atualidade, apresentou no dia de ontem, 20 de agosto – a opinião de Carolina Larriera, economista argentina que trabalhou durante dez anos na ONU e foi companheira do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello.

O artigo faz uma radiografia do mundo atual, precisa, sem demagogia, botando a nu como são tratadas de modo geral pessoas que dedicam suas vidas à procura da paz e da ajuda na resolução das grandes injustiças sociais que se praticam aqui e ali em nome de uma política de favorecimento ao grande capital e em detrimento dos que apenas sobrevivem vendendo a sua força de trabalho. 

Carolina estava em Bagdá durante o atentado contra a sede da ONU que vitimou o diplomata Sérgio Vieira de Mello. O nome do artigo é: Sérgio e as outras vítimas. Vamos a ele:

A organização onde Sérgio trabalhou durante 34 anos se recusa a seguir a determinação da lei brasileira, que garante que Sérgio e eu tínhamos uma união estável. Essa mentalidade patriarcal, que protege valores anacrônicos, viola o direito elementar de qualquer mulher.

O sol abrasador que mantinha a temperatura de Bagdá estacionada em 50º C fez com que nossa manhã começasse cedo, como ele tanto gostava. Entrei na cozinha para preparar um chocolate quente e uma fatia de mamão, mas os planos de um café da manhã tranquilo foram frustrados quando percebi que uma queda de energia durante a madrugada havia talhado o leite. 

Tivemos que nos contentar com Ovomaltine diluído em água. Ele não reclamou. Tomou minha mão entre as suas e disse, para me consolar, que logo estaríamos no Rio de Janeiro. A promessa foi acompanhada de seu sorriso franco e de um beijo apressado. Em seguida, ele pegou a pasta e partimos na direção do Hotel Canal, onde ficava nosso escritório. Voltamos a nos encontrar horas mais tarde. Ele já não sorria, então. Preso entre os escombros de um prédio em chamas esforçava-se para manter a consciência enquanto eu tentava, inutilmente, resgatá-lo.

O atentado terrorista contra a sede das Nações Unidas no Iraque, em 19 de agosto de 2003, matou 22 funcionários da organização, entre eles meu marido, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello. 

No momento de sua morte Sérgio ocupava o cargo de alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos. Ele fora enviado ao Iraque para ajudar o país a construir um governo democrático no pós-guerra, e eu o acompanhei no papel de economista para seguir as discussões sobre o futuro do petróleo na região. 

Trabalhei sete anos na ONU. Sofremos lado a lado o excesso de calor e a falta de segurança, as dificuldades no trabalho e a desconfiança da população, mas também compartilhamos o sonho de um futuro melhor. Nunca passou pela minha cabeça não o acompanhar ao Iraque. Afinal, éramos uma família. Vivemos juntos em Genebra, Nova Iorque e Timor leste, não seria diferente em Bagdá. 

Mesmo assim, a ONU se recusou a reconhecer o meu papel na vida de Sérgio. Fui excluída das listas de sobreviventes do atentado e, apesar de ter sido testemunha da tragédia, minha declaração ficou de fora das investigações. O tratamento diferenciado deveu-se ao meu estado conjugal; sem um documento que provasse que éramos marido e mulher, eu simplesmente não existia para a organização.

Essa é uma atitude difícil de entender quando se leva em conta o histórico das Nações Unidas na promoção dos direitos humanos. Tanto na Plataforma de Ação de Pequim (1995) como na convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (1979), a entidade promove a existência de diversas formas não convencionais de famílias. Trata-se de um reconhecimento importante por proteger mulheres que vivem com seus parceiros sem um documento que comprove essa união. Afinal, são essas mulheres as que mais sofrem preconceitos e têm seus direitos ignorados quando perdem companheiros em eventos trágicos.

Embora reconheça isso oficialmente, em seu estatuto interno, a burocracia da ONU continua promovendo o conceito tradicional de família, isto é, a constituída unicamente via casamento. Devido a essa situação paradoxal, a organização onde Sérgio trabalhou durante 34 anos se recusa a seguir a determinação da lei brasileira, que garante que Sérgio e eu tínhamos uma união estável. 

O julgamento brasileiro — obtido como consequência de um processo judicial de dez anos, que examinou cuidadosamente as evidências apresentadas por todas as partes — é claro e definitivo. O governo brasileiro também confirmou às Nações Unidas que, com base no julgamento, nossa família “tem status igual ao casamento, para todos os fins legais”. No entanto, a organização persiste em seus valores vitorianos.

Essa mentalidade patriarcal, que protege valores anacrônicos, viola o direito elementar de qualquer mulher: o de ter seu papel reconhecido, sua figura legitimada e sua existência confirmada como parceira do homem com quem escolheu viver. Também fere a dignidade humana ao incitar desvantagens, estereótipos e preconceitos políticos e sociais.

Sérgio costumava dizer que é preciso expor a igualdade entre as pessoas com ações, não com palavras. Dezesseis anos se passaram desde então. Está na hora de homenageá-lo, e a tantos outros como ele, respeitando suas escolhas pessoais e legitimando a família e a mulher que o acompanharam nos últimos anos de sua vida em vez de soterrá-las sob preconceitos que não encontram mais espaço nos tempos atuais. Está na hora de a ONU pôr um fim à incoerência entre o discurso oficial e sua política interna, para que as vítimas negadas pelo sistema encontrem a paz e a dignidade que merecem.

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Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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