Alto-falantes da paixão – Capítulo último, por Z Carota

Alto-falantes da paixão

por Z Carota

Capítulo último

O ele

ontem, ao escutar os primeiros anúncios feitos pelo bom mascate Alvair nos alto-falantes de seu caminhão de delícias, dei, como de hábito, um galeio da cadeira e fui vestir a farda de ir à rua – camiseta mascada pelo boi Odilon, bermuda xadrez frouxa e chinelos –, mas, dessa vez, não para garantir minha cota semanal da esplêndida “Pamonha do Goiás” e sim para fim superior: tentar descobrir o nome do criativo enamorado que, para convidar a cavalheira Antônia para ir a um forró, pagou uns tostões ao bom mascate para que este, entre as ofertas de pamonhas, maracujás, mamões etc, fizesse de seu caminhão um veículo do amor.

e por que esse meu frenesi em saber-lhe o nome, poderá indagar você.
homessa, que dúvida!
porque nome, bem disse Doutor Freud, é destino.

ao chegar à portaria, apesar do vidro fumê da entrada, consegui avistar meu herói do outro lado da rua, graças ao fato de ele ser homem de hábitos, a saber: sempre recostado ao muro do estabelecimento do estofador Djalma, de modo a ser visto por qualquer um/a saindo do prédio em que moro, especialmente, claro, a cavalheira Antônia; sempre trajando terno, mas sem gravata, vergando em seu peito prenhe de paixão camiseta promocional d’alguma firma e calçando par de tênis do tipo atleta, com solado de amortecedores e tecido multicolor, e, para mim, traje “esporte fino”, na batata, é isso: estar pronto tanto para fazer um cooper quanto para substituir um padrinho de crisma que deu o bolo no afilhado, e o resto é resto, coisa de wannabes.

o caminhão se aproximava, Antônia poderia aparecer a qualquer instante, me apressei em fazer o contato para saber-lhe o nome, o que fiz de forma objetiva o quanto possível:

– bom dia.
– bom dia – respondeu-me.
– posso papear consigo (sim, como já disse, aprecio adotar fumos fidalgos, de Belle Époque, dá licença? muito grato)?
– se for rapidinho, sim – pontuou.
– será. bem, antes de mais nada, eu sou um dos que o aplaudiram pelo que fez para chamar a atenção de Dona Antônia, e, se me permite a imodéstia, eu puxei os aplausos.
– que isso? – fez a retórica e modesta pergunta, ilustrada por um sorrisinho de soslaio.
– não, não seja modesto. a soma de coragem e criatividade foi um colosso, o senhor sabe.
– nada, ué – minimizou, e, depois de uma pausa curta, com a naturalidade dos sábios, filosofou: – quem não arrisca, não petisca, né?
– só me cabe concordar – respondi, contendo o impulso sísmico de lhe pedir “dê cá um abraço, batuta!”. nervo e costume sob controle, fiz a pergunta definitiva, mas de forma indireta: meus parabéns, senhor… senhor…

e ele, com aquela simplicidade dos que não e nunca se jactam de serem únicos, porque têm tudo harmonizado, coerente e justo ao que são, dizem e praticam, tudo mesmo, dos modos e modas até o nome, revelou-me, enfim, o seu:

– Gomes.

pausa para epifania.
Gomes.

por obsequiosa fineza, de si para si mesmos, a voz alta, repitam: Gomes.
me digam: algo sobra, algo falta, algo destoa, algo mais definitivo do que Gomes?

Gomes não é querer nem merecer.
Gomes se é ou não se é, eis tudo.
é, pois, destino, ou vocês vão discutir com Freud?

defendo, inclusive, que Gomes dê nome a uma certa e mui especial corrente filosófica (existencialista, óbvio) que estabeleça valores que, na impossibilidade de serem emulados, ao menos sirvam de parâmetros ao proceder social. por exemplo: praticar algo a outrem que transgrida o basilar Enunciado Tácito de Ética de Gomes resultará em pena capital ao larápio, por arremesso do penhasco.

Gomes, o marco entre a civilidade e a barbárie.

divaguei, me perdoem os ataques de ternura, e prossigo.

quando voltei a mim, vi os olhos de Gomes ao brilho de mil volts.
imaginando o porquê, olhei para o outro lado da rua e confirmei a suspeita: saindo do prédio, célere e sorridente, Antônia, num vestido de primaveril estampa, em absoluta harmonia pictórica com os bobs que lhe prendiam os cabelos, a mãos ambas, farfalhava byes a Gomes, que, qual estivesse hipnotizado, moveu-se para ir ao encontro da amada (quiçá, para tomarem mais “uma guaraná”), então apressei-me para minha última manifestação:

– Sr. Gomes, sério: eu torço por vocês.
– (risinhos) a gente ainda tá se conhecendo melhor, mas muito obrigado, jovem.

uma celebridade, ele, e legítima, não essas de revistas e colunas de fuxicos.
comecei querendo ser cupido, mas agora quero mais, bem mais.
damo de honra no casamento ou, sei lá, seu afilhado de crisma.
porque, Gomes, teu destino é amar – e ser amado.

fim

Z Carota é jornalista e escritor, autor de “dropz” (Editora Penalux) e “a beleza que existe” (Páginas Editora)
Facebook: https://www.facebook.com/marcelo.carota.92/
Instagram: @zecarota
Twitter: @zcarota1

Leia os capítulos anteriores:

Zê Carota

Ganhou espaço nas redes sociais com suas intervenções. Textos curtos. Rápido no gatilho

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