Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
[email protected]

Amanhã, por Maira Vasconcelos

O comum dia-a-dia é rápido demais e meus escritos estão na contramão desse tempo. Apenas no total silêncio e resguardo a percepção se faz viva para a palavra escrita. Na quietação do corpo recebe-se aquilo que, se ficar abafado, sufoca, e os sentidos ficam desnorteados. O tormento existe. Então, uso fios de condução e estimulo a saída, senão fico presa em mim mesma, e todos eles aqui também. Às vezes, ter o superficial deve ser um alívio, um alívio para se caminhar com a vida estando-se mais livre liberto, digo, da própria vida. Não ter a escolha pelo superficial é injusto – enfim, há espírito, e dele alguns se ocupam, eu vivo preenchida, sendo constantemente avisada do meu pertencimento ao mundo não-material. Se todos soubessem como esse involuntário afastamento é difícil.

O corpo, quando externamente deve representar o que é o interior de nós, com ele faz-se cria inventa: Rodin torcia retorcia e cobria as poses de suas próprias mãos que logo eram feitas entregues ao mundo, mas Camille tão viva sensitiva deslizou mais claramente pelas formas ângulos pontos que nos desenham a angústia. O corpo humano é ultrapassado pelo olhar do escultor, aquele olhar intimista introjetado ao contorno das esmiuçadas partes a serem ressaltadas. Também a palavra deve ser por meus olhos ultrapassada. No trabalho de ir além pelas formas da natura, coloridas e musicais, extravagantemente irreais e suspensivas. Perde-se do objeto principal ganhando o lado a sombra a reta a linha mais funda que nele residirá.

Esquecer-me-ei de tantas palavras, para então vê-las na maior introspecção que as ocupa, apenas. Escrevendo pelos significados-significantes, que são a máxima tradução de todas as coisas-elementos-símbolos que me passeiam. Mas tudo isso é subjetivo hermético demais, já me disseram criticamente, e ninguém quer ler essas des-armações. Por isso, estarei talvez sem a atenção e a dedicação amplas de um leitor que já morreu para o jornal. Mas essas crônicas são apenas o modo disfarçado de alcançar um livro sem perceber, e fingindo muito também.

Aparecem-me Camille-e-Rodin, como se eu soubesse que uma carta artística enviada desde Paris estaria a buscar a fresta da minha porta, hoje, às nove horas da manhã e dezoito minutos. E assim, por fim, posso decretar haver encontrado algum sentido a este escrito nada criativo. Pergunto, onde estão as cores dos quadros, a resistência das flores? Estou sem molde, sem haste, talvez porque todo enredo passe por quedas e ápices. E ao cair, tão quieta silenciosa imóvel e fria, pergunto-me novamente o que farei com as impressões que tenho adentro. Pode tudo ficar sem tradução? Isso é o estado oco da criação?

Ser afetado por tudo tudo o que no mundo é externo a nós mesmos, nos deixa em estado de não-saber. Fico sem saber se escreverei amanhã. Além do mais, minha próxima crônica nunca é um fato: perco-me constantemente e facilmente na realidade. Quando outros além de nós mesmos mexem com o nosso bem-estar, lá dentro, sente-se o mal a queda o rompimento de algum laço que nos ata ao próspero, quando enfim poderíamos mutar a ação de nossos corpos. Amanhã. Haveríamos de querer o amar.

Ser afetado por tudo tudo o que no mundo é externo a nós mesmos, a voracidade a brutalidade a intolerância a falta de tempo e o nenhum-silêncio de todos juntos, tudo isso paira por esta simples e antiga janela e atira minha imaginação no buraco. Fico entristecida numa face que eu oculto, que não se vê, porque sorrio tanto também. Mas sendo frágil fino refletor todo corpo poderá perder sua luz diante do mundo. Amanhã. Mas nunca nas mãos de Camille. Se todo corpo aos seus olhos, vejam, retém almeja esbanja luzes de incansável fervor. No amanhã.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador