Casa vazia – retorno melancólico a São Paulo, por Daniel Gorte-Dalmoro

Às vezes o movimento não precisa ser no espaço físico, pode ser intelectual, pode ser da memória. Passeio entre lembranças, vazios e medos - que me prendem, os três.

Casa vazia – retorno melancólico a São Paulo

por Daniel Gorte-Dalmoro

Volto para São Paulo, para tomar a dose extra da vacina – não que Pato Branco não tenha, mas é tão organizado e bem divulgado que é quase como se não tivesse -, encontrar alguns amigos e pegar algumas coisas úteis que deixei para trás em minha saída às pressas, há quatro meses, com dez dias para organizar o que foi possível e ir acompanhar minha mãe em seu tratamento de saúde. 

Abro a porta do apartamento e sou tomado pelo familiar, pelo aroma característico de minhas casas – que uma ex-namorada certa feita definiu como misto de tênis pé com naftalina, talvez este cheiro vindo de tantas memórias guardadas, já que o antitraça mesmo, não tenho. O segundo momento é de estranhamentos. Primeiro, da ausência de meus gatos (que ficaram em Pato): chegar sem tê-los para me receber fez eu sentir a casa vazia como nunca sentira antes. Depois, das pequenas mudanças na ordem dos móveis: por um mês uma amiga ficou em minha casa (o plano era que ficasse enquanto eu estivesse fora), e também saiu às pressas, devido a questões pessoais. São pequenas alterações, nenhuma significativa, mas o suficiente para me lembrar: estive um tempo ausente, muita coisa aconteceu lá fora, e mesmo aqui dentro as coisas não são como antes.

Passo praticamente uma hora apenas respirando essas mudanças. Algumas dou conta de saber onde estavam antes, outras, simplesmente não consigo achar onde era seu lugar. O sofá da sala está mais para o centro, o arranhador dos gatos virado 90°, a mesinha de centro no centro da sala – mas encostada em que parede ela ficava antes? -, a espada de São Jorge longe da janela, a rede, recolhida. A cômoda do quarto em outra parede, o boneco para desenho de observação longe dos quadrinhos que ganhei da Dani e do Felipe. O banheiro sem os apetrechos dos gatos parece descomunalmente amplo – e demoro para me dar conta do que causava essa impressão. Na área de serviço estão os tapetes da casa (vários deles deixados pela antiga dona), não sei se limpos ou por lavar – seu cheiro é o mesmo de todo o resto da casa -, e uma profusão de caixas de papelão que deixo para os gatos: só então noto que a casa está limpa de todos esses cacarecos para os bichanos. Minha kombucha ainda está viva, um pacote de macarrão aberto fez uma prateleira se infestar de carunchos. Penso em Meio Sol Amarelo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Por ora a comparação é desmedida: a urgência se deu por motivos pessoais, mas se e quando toda essa guerra que se arma pelos fascistas de variados matizes estourar, meu regresso ao lar de São Paulo será apenas para uma casa vazia e com carunchos? Terei ainda uma casa? Ou terão queimados meus livros em praça pública, juntos com de tantos “comunistas”, como fizeram com os 30 mil exemplares de Álvaro Linero, vice-presidente da Bolívia, em 2019?

Preparo um chimarrão. A cuia que uso é a mesma que aprendi a tomar mate – argentino -, em 1997, e ganhei de presente do Celestino quando me mudei de Pato Branco. As aulas no colégio em frente voltaram – trocaram o sinal, puseram o hino nacional no lugar de O Barbeiro de Sevilha -, mas as galinhas do pátio da escola, não. Coloco uma música para me acompanhar na solidão que me toma – a sequência mantém o clima nostálgico: Mogwai, Clap Your Hands Say Yeah, Songs: Ohia, Verve, Galaxie 500, Blick Bassi, Cícero – recordo que quem mo apresentou foi a Misson. 

Noto a ausência do cinzeiro que ela comprara para quando fumasse em minha casa – depois da sua partida utilizado como vaso para meu cacto, e após ele morrer também (tinha 19 anos), apenas uma recordação de enfeite enquanto espera novo uso. Encontro-o no armário dos pratos – e me questiono como terá sido sua ressignificação pela minha amiga. Na pia, uma caneca da Rosa Luxemburgo esperando ser lavada: “quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem”. Eu complemento: quem se movimenta apenas no espaço que lhe é autorizado, também não. Às vezes o movimento não precisa ser no espaço físico, pode ser intelectual, pode ser da memória. Passeio entre lembranças, vazios e medos – que me prendem, os três. A mochila que deixei no sofá e uma sacola preta largada na porta do banheiro mais de uma vez fizeram com que eu visse Guile dormindo e Libertad à espreita. Mas estou sozinho. Será que eles também sentem essa ausência toda quando estou fora? Apresso minha saída para tomar a vacina – saberei logo mais, no caminho, que, apesar do bonito céu plúmbeo, será uma caminhada melancólica e ressentida por entre recordações, desejos e questões mal resolvidas.

Redação

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