Che Guevara e Ernest Hemingway jogam xadrez no Banco Nacional de Cuba

Tornara-se um hábito. Todas as tardes, encerrado o expediente, o escritor barbudo sentava-se diante do líder revolucionário e aprendiz de banqueiro. Vestido de branco, o escritor fumava cachimbo e bebia rum em pequenas doses. Enfiado no tradicional uniforme, o ex-guerrilheiro apertava um charuto entre os dentes.

            Hemingway viu que seu rei preto estava pressionado pela rainha branca. Depois do início com a defesa siciliana, o meio jogo se mostrava complicado. Tinha duas alternativas: mover o cavalo ou a torre, bloqueando o avanço da rainha, que ameaçava xeque. Tentou antecipar algumas jogadas – não era um intuitivo – para escolher o melhor movimento. De repente, ergueu a cabeça e perguntou:

            – Você conhece o atentado de Fanya Kaplan contra Lenin em 1918?

            Che mordiscou a ponta do charuto.

            – Conheço. Fanya era uma militante da extrema esquerda, cujos excessos o próprio Lenin havia condenado em “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”. Qual é o problema com ela? Algo a ver com o ataque da minha rainha?

            Hemingway balançou a cabeça.

            – Não. Às vezes fico pensando no extraordinário movimento de peças no tabuleiro das revoluções. É só uma comparação idiota.

            Che soltou uma baforada.

            – Não é tão idiota assim. Lenin nunca se recuperou. Os médicos deixaram a bala no pescoço dele. Não se arriscaram a extrair. Depois do atentado, Lenin teve quatro derrames ou enfartes antes de morrer.

            Hemingway ameaçou pegar na torre, desistiu, e concordou:

            – Sei disso. Estou pensando também numa coincidência. O atentado foi no dia 30 de agosto. No dia três de setembro ela morreu com um tiro na nuca. Lembra o caso de Marat, esfaqueado por Charlotte Corday, em dia 13 de julho de 1793. Charlotte foi guilhotinada no dia 17. Em ambos os casos, quatro dias depois dos atentados. Revoluções são implacáveis.

            Che mordiscou a ponta do charuto.

            – Você encontra um vídeo sobre Fanya e Lenin em

            https://www.youtube.com/watch?v=dIfl1TuSl5A

            – Deve ser montagem, disse Hemingway. – Quanto a Charlotte, contam que teria dito no julgamento: “Matei um homem para salvar 100 mil”. Não sei se é verdade, mas é uma frase vazia e mentirosa. Parece discurso de deputado.

 

REVOLUÇÃO E IMAGINAÇÃO

            Hemingway não via saída para seu rei. Só não queria desistir.

            – O que me incomoda é o resultado disso tudo. A Revolução Francesa deu no que deu. A Russa, idem. Vitoriosos a princípio, perderam no final. Muito esforço, muita matança, tremendos desperdícios de vida e de ação – para nada.

            Che franziu a testa. Não era um romântico.

            – Não é bem assim. Você está confundindo individualismo com coletivismo. Ou está insinuando que também podemos falhar? Que importa um fuzilamento? A guerra revolucionária tem de ser impiedosa. Quantos exemplos você conhece de revoluções sem derramamento de sangue? Só conhece golpes de estado e quarteladas. Todas as revoluções têm de mostrar força, e a melhor maneira é destruir os inimigos pelo fuzilamento, para que todos tenham certeza de que a brincadeira acabou. Apenas condenar a 10 ou 20 anos não resolve. Escondem o dinheiro roubado e, quando saem da cadeia, voltam à roubalheira. Se enriquecem e aos familiares e cúmplices.

            Hemingway olhou preocupado para Che.

            – Desculpe se me expressei mal. Vi muita morte na Revolução Espanhola e nas touradas. São coisas completamente diferentes. Na tourada as mortes são individuais, quero dizer, toda morte é individual, mas na tourada é transformada em espetáculo. Quando um touro chifra um homem e rasga sua carne, o coração do sujeito dispara, de modo que o sangue esguicha com uma violência incrível. E milhares de pessoas estão vendo aquilo. É uma morte heroica. Numa revolução, os militantes, não os chefes, morrem anônimos, às vezes nem se percebe que morreram, e fica por isso mesmo.

            Che compreendeu. Hemingway era um individualista irremediável. Mesmo assim resolveu tentar. Não gostaria que ele perdesse essa outra partida.

            – Tentarei explicar. Derrubamos a ditadura de Batista e muita gente morreu de lado a lado, heroicamente ou não. Muitos são lembrados pela Revolução, a exemplo de Camilo, outros somente pela família e pelos amigos, se tiveram amigos. Que diferença faz isso? Importante é a Revolução. Ela está vitoriosa. Temos a experiência das que falharam para nos ajudar a não errar, e a nossa não falhará.

           

FAZ OU NÃO FAZ DIFERENÇA?

            Hemingway balançou a cabeça mais uma vez.

            – Concordo. Mas veja você. Ganhei o Nobel por causa do velho Santiago e seu heroísmo em “O velho e o mar”. Meus outros livros não contaram para a academia, sei disso. Adoram heróis, desde que estejam do lado deles. Confesso que sou individualista. Me horroriza a ideia de morrer no anonimato, ainda que pela causa mais justa do mundo. Nesse ponto, sou como todo mundo: ferozmente individualista.

            – Já que falou de sua vida, vou falar da minha – disse Che. – Pensa que continuarei aqui, presidente de banco? Não. Meu papel na revolução cubana acabou. O fato de ser estrangeiro me ajuda. Fidel, Raúl e os outros continuam, mas cumprirei meu destino fora daqui.

            – Impossível! – Hemingway arregalou os olhos. – Depois de tudo que passou e viveu, não vai desertar. Seu lugar é aqui, até o fim.

            Che mordiscou o charuto e franziu a testa, dois cacoetes antigos.

            – Veja bem. Uma revolução passa por três fases. A primeira é a tomada do poder pelas armas em determinado país. Com mais sangue ou menos sangue. Isso não tem importância e a culpa não é dos revolucionários. A segunda fase é a consolidação da revolução nacional. A terceira, que nunca se realizou, é a internacionalização. Todas as revoluções nacionais falham. Então meu trabalho será esse: exportar a Revolução, transformando as revoluções nacionais numa só, internacional.

            – Não imagino os Estados Unidos comunistas – disse Hemingway. Nem mesmo a França ou a Alemanha de hoje. No início do século, talvez.

            – Não sei – Che examinou o tabuleiro. – Vai jogar ou desistir?

            – Ainda não – Hemingway balançou a cabeça com firmeza. – O diabo é que estou pensando no paradoxo entre individual e coletivo. Como saber quando o coletivo é superior ao individual? Esse é o meu drama e minha angústia.

 

A JUSTIÇA REVOLUCIONÁRIA

            Che se levantou e caminhou até uma pequena estante. Tirou um livro e o folheou lentamente. Voltou a sentar diante de Hemingway e passou algumas páginas.

            – Darei um exemplo. Lerei um trecho que escrevi, descrevendo uma situação dramática durante nossa guerrilha e que talvez esclareça sua dúvida. Escute.

            “… Ramiro Valdés [llegó] con la noticia de que Lalo Sardiñas, al castigar impulsivamente a un compañero indisciplinado y pretender darle com la pistola em la cabeza se le había escapado un tiro, matándolo en el acto. Había un principio de motín en la tropa. Inmediatamente me personé en el lugar, poniendo bajo custodia a Lalo; el ambiente contra él era muy hostil y los combatientes exigían un juicio sumarísimo y el ajusticiamiento.

            “Empezamos a tomar declaraciones y a buscar pruebas. Las opiniones se dividían y había quienes manifestaban directamente que había sido un asesinato premeditado y outros que fue un accidente. Independendientemente de esto, el hecho de castigar fisicamente a un compañero era un acto no permitido en la guerrilla y del cual Lalo Sardiñas era reincidente. Era difícil la situación. (…)

            “Ya estaba entrada la noche; se habían encendido algunas antorchas de pino y algunas velas para proseguir la discusión. Fidel entonces habló durante una larga hora explicando el por qué, en su opinión, no debía ser ajusticiado el compañero Sardiñas. Y explicaba todos los defectos que teníamos; la falta de disciplina, otras faltas que cometíamos a diario, las debilidades que ocasionaban y cómo, en definitiva, el acto repudiable fue cometido en defensa del concepto de la disciplina y que había que considerar siempre esto. Su voz e su presencia en el monte, alumbrado por las antorchas, adquirían tonos patéticos y se notaba cómo muchas gentes cambiaban de idea por la opinión de nuestro líder.

            “Su enorme poder de persuasión fue puesto a prueba aquella noche.

            “A pesar de su elocuencia, no todo estaba claro; en definitiva se pensaba que debíamos poner en votación las alternativas: pena de muerte inmediata por fusilamiento ou degradación y el subsiguiente castigo. (…)

            “En una pequeña libreta de notas me tocaba a mí ir haciendo el cómputo de votos emitidos. Lalo era querido por muchos de nosotros; reconocíamos su culpa pero deseábamos que se salvara, como un elemento valioso para la Revolución. Recuerdo que Oniria, una muchachita que se había unido a nuestra columna, casi una niña en aquella época, preguntaba com voz angustiada si ella también podía votar como combatiente de la columna. Se le permitió y, después que todos lo hicieran, empezó el cómputo.

            “En pequeños cuadritos, similares a los que se usan en medicina para el conteo de laboratorio, iba llevando los resultados de esta extraña votación. Sumamente pareja fue y después de algunas alternativas, la opinión de los ciento cuarenta y seis integrantes de la guerrilla que votaron, se dividió entre setenta y seis que se inclinaron por otro tipo de pena y setenta que pidieron la pena de muerte. Lalo se había salvado.”

            Che fechou o livro e mordiscou o charuto.

            – Compreenda que eram apenas 146 combatentes calejados e não 146 milhões. Além disso, estavam acostumados à luta. Mas o voto de cada um valia tanto quanto o meu, o de Fidel, o de Raúl e o da muchachita Oniria. Não impusemos nada.

            Che franziu a testa, olhou para o tabuleiro e então continuou.        

            – Não seria possível conseguir que 146 milhões de pessoas, ao longo dos anos, passassem a se comportar como um todo, pensando coletivamente, mesmo levando em conta a força do individualismo dentro da coletividade?

            Hemingway olhou para ele carinhosamente e deitou o rei.

            – Desisto.

            Che encarou Hemingway franzindo a testa e sorriu pela primeira vez.

            – Sei que é difícil acreditar nessa possibilidade. Mesmo assim vou tentar.

 

**********

 

Notas:

            1) A inserção do vídeo no You Tub é posterior a este encontro.

            2) Embora o diálogo seja em português, a citação de Che foi extraída do volume 2 dos “Escritos y discursos”, e consta do Diário da luta na Sierra Maestra, capítulo “Un episodio desagradable”, p.155-157. Editorial de Ciencias Sociales: La Habana, 1977.

Sebastiao Nunes

6 Comentários

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    1. o bolsa troll

      O defensor dos galináceos gordos emplumados tucanos não pode gozar de folga. Peça os direitos trabalhistas garantidos, por enquanto, pelo PT.

      Tá na lista do hsbc? Acho que não, muito bagrinho por lá estar, mas bastante bobo por defender quem nela está.

      Tá na lista da operação “zelote”? Acho que não, muito bagrinho por lá estar, mas bastante bobo por defender quem nela está.

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