Crônica

Comme d’habitude, My way, por Homero Fonseca

Comme d’habitude, My way

por Homero Fonseca

My way (Do meu jeito), celebrizada por Frank Sinatra, é a versão escrita por Paul Anka da canção francesa Comme d’habitude (Como de costume). Composta em 1967 por Jacques Revaux e Gilles Thibaut, foi oferecida a vários cantores que a rejeitaram. Claude François aceitou gravá-la e deu uns pitacos na letra, reforçando o tom de dor de cotovelo: à época ele estava na fossa pelo fim de sua relação tumultuada (pelos seus ataques de ciúme) com a esfuziante cantora France Gall. Como de costume narra poeticamente, na repetição dramática do título, a ruína de um casamento, corroído pelo cotidiano. É uma colagem, numa Paris invernal, de cenas cinzentas de rotina e tédio, frieza e jogo de fingimento, sugestão de adultério, desencontro e incomunicabilidade. A imagem que me vem é a de Jean-Louis Trintignant de gola rolê, passivo diante do drama amoroso, atordoado pelo sans sens da vida, a alma blasé. Nada mais francês dos anos 1967. Apesar da bonita melodia e da qualidade da letra, o disco teve uma recepção discreta, bem longe das paradas do sucesso. Num desses fenômenos da indústria cultural, chegaria às paradas de sucesso depois da versão inglesa de Paul Anka lançada por Fran Sinatra, em 1969.

Foi assim: Paul Anka estava em Paris e ouviu Claude François cantá-la na televisão. Se apaixonou pela melodia e comprou seus direitos. Mas reescreveu a letra pensando em seu ídolo Frank Sinatra, espécime da geração americana que viveu a 2ª Guerra Mundial. A transcrição, com o título Do meu jeito, não tem nada, nadica, da original francesa. É um discurso de um coroa autossatisfeito que faz um balanço de sua vida, enaltecendo suas escolhas, minimizando seus erros e proclamando que valeu a pena. É um hino ao individualismo, ao mito do vencedor. Visualizo John Wayne de esporas num rancho em Oklahoma, sob uma luz amarela, contando bravatas para uma plateia de peões. Sem as delicadezas do angustiado casal francês, aqui se trata de assunto de macho, bem sucedido, com uma autoestima parelha a uma certa arrogância, exemplo do way of life americano. Coisa de uma cultura que escreve gramaticalmente o pronome pessoal em maiúscula: I. Ao longo dos anos, virou um dos maiores símbolos ianques. Não à toa foi executada no baile de posse de Donald Trump e é a mais tocada nos funerais americanos, prova da identificação de parcelas do homem comum com um tipo idealizado de herói, egoísta e autoindulgente.

OUÇAM as duas versões:

Comme D’Habitude, por Michel Sardou:

My way, por Frank Sinatra:

E comparem as duas letras, já traduzidas para não ocupar muito espaço:

Como de Costume

Eu me levanto / E te procuro / Mas você não acorda / Como de costume. / Te cubro com o lençol / Para que não sintas frio / Como de costume. / Minha mão / Acaricia seu cabelo / Quase a pesar / Como de costume. / Mas você / Vira as costas / Como de costume. / Então eu me visto ligeiro / Deixo o quarto / Como de costume. / Sozinho eu bebo meu café / Estou atrasado / Como de costume. / Silenciosamente saio de casa / O céu está cinza lá fora / Como de costume. / Eu sinto frio / Levanto minha gola / Como de costume. / Como de costume / O dia inteiro / Eu vou jogar / Um faz de conta / Como de costume. / Eu vou sorrir / Como de costume. / Eu vou até rir / Como de costume. / Enfim eu vou viver / Como de costume. / E depois o dia acabará / E eu voltarei / Como de costume. / Você, você terá saído / E ainda não terá voltado / Como de costume. / Sozinho eu irei me deitar / Nesta cama fria / Como de costume. / Deixarei cair minhas lágrimas / Como de costume. / Mas como de costume / Bem tarde da noite / Eu vou jogar / Um faz de conta / Como de costume. / Eu te esperarei / Como de costume. / Você voltará / Como de costume. / Você sorrirá para mim / Como de costume. / Como de costume / Você se despirá / Sim, como de costume. / Você se deitará / Sim, como de costume. / Nós nos beijaremos / Como de costume. / Como de costume. / Vamos fingir /
Como de costume. / Faremos amor / Sim, como de costume. / Vamos fingir / Como de costume.

Do meu jeito

E agora, o fim está próximo / E então eu encaro o último ato / Meu amigo, vou falar claro / Vou expor meu caso, do qual estou certo. / Eu vivi uma vida completa / Eu viajei por muitas estradas / E mais, muito mais que isso / Eu fiz isso do meu jeito. / Arrependimentos, tenho alguns / Mas muito poucos a citar / Eu fiz o que eu tive que fazer / E vivi por completo, sem exceção / Planejei o curso traçado / Cada passo cuidadoso ao longo do atalho / E mais, muito mais que isso / Eu fiz isso do meu jeito. / Sim, houve momentos / Tenho certeza que você soube / Quando mordi / Mais do que podia mastigar / Mas por tudo isso / Quando havia dúvida / Eu devorei e cuspi. / Enfrentei tudo isso e continuei de pé / E fiz isso do meu jeito. / Eu já amei, ri e chorei /
Tive minhas conquistas e também algumas perdas / E agora, quando as lágrimas cessaram / Eu acho tudo isso tão divertido / E pensar que fiz tudo aquilo / E posso dizer, não de uma maneira tímida / Ah não, ah não, não eu, eu fiz isso do meu jeito. / Pois o que é um homem, o que ele tem? / Se não é ele mesmo, então não tem nada / Para dizer as coisas que ele sente de verdade / E não as palavras de alguém que se ajoelha. / As lembranças mostram, eu levei os golpes / E fiz isso do meu jeito. / Sim, foi do meu jeito.

Legenda: Trintignant x Wayne, dois ícones visuais + uma canção e duas letras = duas culturas

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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