Conversas com minha mãe – Natal, por Daniel Gorte-Dalmoro

Essa história lembro de ouvir todo ano, quando criança, enquanto montávamos o pinheirinho de Natal

Conversas com minha mãe – Natal

por Daniel Gorte-Dalmoro

Natal na infância de minha mãe era especial também não só por causa da cerveja e da gengibirra, como também por causa das bolachas que minha avó fazia – para as bolachas, a Páscoa também era uma data especial. Pergunto o que havia de especial, minha mãe não sabe dizer, além do fato de serem caseiras, e não compradas. Essas haviam uma vez por mês, quando minha avó ia fechar o caderno na Istacho (como se escreve? minha mãe não faz ideia), a venda de um polaco solteiro, que ficava na casa logo ao lado da dela. Das bolachas compradas, a disputa entre as irmãs era quem iria comer as “gordinhas”:

“A maioria era simples, parecia bolacha Maria, Maizena, aí tinha as amanteigadas e as com açúcar em volta, poucas, essas que disputávamos”.

Eu imaginava que a coisa se resolvia com o famigerado “peguei primeiro” – método que deu conta de muitas questões da minha infância, com seus ressentimentos, é certo, mas sem contestação -, mas minha avó não dava vez para competição: quem dividia era ela:

“Muito bem divididinho, irmanamente”, diz minha mãe; eu acho que conviria mais qualificar como “dona Mariamente”, já que irmãos, mesmo que dividam entre si, nunca é tão 50-50 (ou 16,66-16,66-16,66-16,66-16,66-16,66, no caso da família da minha mãe).

Eu ainda lembro, criança, chegar na casa dela da viagem, às quatro da manhã, e comer bolacha com achocolatado: o leite na geladeira vermelha, as bolachas numa lata muito grande e antiga de Toddy. Eram bolachas mais simples que as que eu comia em casa, mas eu achava tão gostosas, e acreditava que a lata onde eram guardadas que fazia a diferença.

As balas – as únicas que minha mãe comia no ano – também vinham mais ou menos pelo Natal: serviam de bolinhas no pinheirinho montado – geralmente uma araucária pequena, mesmo, ou então um galho -, e eram comidas no dia de Reis, em janeiro.

“Havia uma caixa, pai deve ter ganho alguma coisa para ter uma caixa dessas, e nela ficavam as bolinhas – frágeis, quebravam facilmente – e as barbas de pau que enfeitariam o pinheiro”.

Ela conta que além das balas – que vez ou outra as irmãs eram autorizadas a comer antes da hora

 -, algumas ocasiões teve também chocolate:

“Uns guarda-chuvinhas de chocolate vagabundo, mas era o chocolate que tínhamos”.

Essa história lembro de ouvir todo ano, quando criança, enquanto montávamos o pinheirinho de Natal – antes dos filhos e do marido abandonarem o catolicismo de baixa intensidade e se assumirem ateus, e minha mãe acabar desistindo, por fim, dos discretos enfeites natalinos de quando isso passou a ser só do interesse dela – o baleiro de Papai Noel, flores XXXX, uns laços vermelhos pela casa.

Mal virava o mês e entrava dezembro, e eu e meu irmão queríamos montar o pinheirinho – e olha que nos anos 1980, início dos anos 1990, as lojas não se enfeitavam para a data tão logo passava Finados! Minha mãe tentava adiar um tanto, que fosse até o primeiro final de semana, e comentava:

“Quando eu era criança, a gente montava o pinheirinho só no dia 24, para desmontar no dia de Reis”.

Eu nem sabia o que seria o tal dia de Reis – essa data não chegou até minha geração e tive algum contato maior por causa das tirinhas da Mafalda -, mas achava de uma crueldade atroz obrigar uma criança a esperar tanto tempo montar a árvore: já não bastava esperar pelo presente? (Claro, não passava pela minha cabeça infantil que minha mãe não tinha como ganhar presentes). Nem eu entendo que festa toda era esse preparar a árvore, talvez para ter certeza de que o Natal estava vindo mesmo, talvez por conta de qualquer ritual compartilhado com minha mãe, talvez por poder exercitar meu senso estético, ao escolher qual bolinha ia onde: eu adorava uma em que metade era a cara do Papai Noel em relevo, quase como um rosto esculpido na rocha, ou melhor, no vidro. Também reconheço uma frustração que durou anos, quando minha mãe me impediu de montar na sala, em lugar de honra, um presépio com os bonequinhos do Comandos em ação pintados com tinta guache. Gostava, além do mais, dos enfeites para pôr pinheirinho feitos de isopor, tecido e muita pupurina: havia caixas de presentes, uma bengala e uma casa (meu lado arquiteto sempre pulsando).

A partir de certa altura, passou a ter também as luzinhas compradas no Paraguai (até então, luzinhas de natal eram os enfeites da prefeitura na avenida Tupi e uma dúzia de lâmpadas pintadas ou embaladas em papel celofane que o vizinho ao lado, seu Tercílio Cola, pendurava na estrutura da cobertura que faz a vez de garagem). Das luzes de natal de sua infância, a lembrança que minha traz agora eu não recordava. Conta ela

“As luzes de Natal de minha infância eram velas de verdade, pequenas, que tinham um ‘candelabro’ – ou sei lá como poderia ser chamado – presos nos galhos do pinheirinho. E exigiam cuidado, para não incendiarem a árvore toda. Eram acesas no Natal e no dia de reis, terminadas”.

Pergunto a minha mãe se também era momento de alegria montar o pinheirinho. Ela responde não apenas afirmativamente, mas com uma grande empolgação: “ô se não era!”. Talvez mais que no Papai Noel que apareceria no fim do mês, viesse daí, dessa empolgação presente nas entrelinhas das histórias de Natal contadas por minha mãe e seu pinheirinho enfeitado com balas que comeriam no dia de Reis, minha empolgação infantil em todo início de dezembro.

Daniel Gorte-Dalmoro é escritor e funcionário público. Filósofo e Sociólogo formado pela Unicamp, Mestre em Filosofia pela PUC-SP (se debruçou sobre A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord), Psicanalista em formação. Autor, dentre outros, de Trezenhum. Humor sem graça. (Ibiporã 1011) e Linha de Produção/Linha de Descartes (Editora Urutau).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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