Crônica de domingo: Orozimbo e a passeata que não aconteceu em Poços

No post sobre a política estudantil em Poços dos anos 60, entrou um comentário do Rogerinho Furtado, bravo comigo, por ter exposto nosso amigo Gerinho e poupado os dedoduros da cidade.
 
De fato, da maneira como o texto foi escrito pode ter passado a impressão de que nosso comunista predileto, o Gerinho, passou em brancas nuvens pelo golpe de 64, Não foi. Penou muito, foi perseguido.
 
Antes da gloriosa, os medos de Gerinho eram mais sulmineiros, próximos do medo de saci, mula sem cabeça. Tinha medo pânico de… aborto. Não conseguia andar sozinho pela noite de Poços com medo de ser surpreendido por um aborto.
 
– Mas, Gerinho, como o aborto vai te pegar?
 
– Sei lá, mas morro de medo.
 
Depois de 64, passou a se haver com medos mais concretos.
 
O comentário me trouxe outras lembranças.
 
Rogerinho e seus dois irmãos, Totonho e Luiz (me esqueci do seu apelido), pertenciam a uma família de esquerda, dos alunos do Colégio do Arinos. Quando o conheci, a mãe tinha uma pensão na rua Paraiba.
 
Lá por 1968 ou 1969, indignados com a situação política, decidimos organizar a primeira passeata de protesto em Poços de Caldas.
 
Combinamos detalhadamente. No dia marcado, os manifestantes nos reuniríamos na pensão da mãe do Rogerinho, forrarísmo o estômago com uma canja de galinha e seguiríamos para a praça.
 
Apenas uma peça faltava para o evento: os manifestantes.
 
O Rogerinho deu a ideia de recorrermos ao nosso pai-de-santo predileto, o Orozimbo, que tinha um terreiro perto da Fonte dos Amores e, entre as sessões, vivia cercado de jovens discípulos nda praça da cidade, a quem ensinava capoeira e outras artes exóticas.
 
Fomos até o Orozimbo, que nem vacilou:
 
— Podem contar comigo. Marquem o dia que trarei os italianos da Vila Cruz e o pessoal da Vila Nova.
 
Marcamos.
 
Na hora marcada para a canja preparatória, sentamos na mesa da pensão e traçamos a comida. E nada da italianada chegar. Repetimos. E nada.
 
Finalmente, demos o braço a torcer e fomos para a praça cobrar a promessa do Orozimbo,
 
Nem sei qual foi sua desculpa, mas deve ter sido similar ao caso ocorrido com a melhor amiga da minha mãe, que morava em Casa Branca e estava em crise com o marido.
 
Como a fama do Orozimbo já correra a regiao, ela veio a Poços para uma consulta. Saiu de lá apavorada e chegou em casa aos prantos. Contou para minha mãe que Orozimbo tinha previsto que o marido morreria dentro de alguns meses.
 
Muitos e muitos meses depois cobrei do Orozimbo a predição. E ele:
 
– Não morreu? Uh, que bom!
 
Outra famosa do Orozimbo foi com o Gordo, que fazia parte do seu séquito de valentões. Gordo seguiu para o Rio para prestar concurso para sargento da Aeronáutica. Consultou Orozimbo que foi incisivo:
 
– Faça a prova que pelo menos metade das questões o santo garante.
 
Gordo fez a prova. Preencheu metade das questões e devolveu as demais em branco, com uma caneta dentro para serem preenchidas pelo santo.
 
Orozimbo foi muito amigo de tio Felipe, irmão mais velho de meu pai, tocador de acordeão e um gozador incorrigível, que voltou para a Argentina nos anos 40, antes do meu nascimento.
 
Na época tínhamos a mania de cantar a “Miquelina”. Era um refrão para desafios improvisados. Quando a macaca estava solta, Orozimbo garantia que via tio Felipe empoleirado no meu ombro, que nem papagaio.
 
Com seu tipo suave, de professor de capoeira, de pai de santo, Orozimbo tornou-se personagem predileto dos causos poçoscaldenses.
 
Quando Orozimbo morreu, estávamos todos nós, Rogerinho, Totonho, Tião Cabo Verde, Zé Grandão enfrentando os santos mais pesados da metrópole.
 
Luis Nassif

6 Comentários

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  1. Mineirinho


    O Tonho Furtado foi meu colega no curso de jornalismo na UFRGS pós-1964. Não sei por quais cargas d’água foi parar lá. Perseguição em Poços? Nós o chamávamos simplesmente “Mineirinho”. Vivia na Casa dos Estudantes, um alojamento gratuito para universitários.  Grande figurinha! Trotsquista aplicado tinha uma disposição para o combate absurda. Além disso, Mineirinho era de uma doçura e solidariedade sem tamanho com os colegas e amigos.Com a progressiva mudança do comportamento do DOPS em relação aos universitários e aumento das perseguições e prisões eu soube que Tonho Furtado, o “Mineirinho”, foi preso e muito torturado. Depois o reencontrei em São Paulo, mas com o tempo perdi o contato. Se ainda estiver por aí, grande abraço Mineirinho!!!

    1. Tonho Furtado

      Oi, Branca:

      O Tonho foi preso em Porto Alegre, no começo de 1967, depois de algum tempo na clandestinidade. Transferido para um quartel do exército, em Santa Maria, seria libertado quase dois anos depois, após julgamento na justiça militar.

      Ele diz que foi razoavelmente bem tratado pela maioria da oficialidade e melhor ainda pelos sargentos e soldados, que lhe hipotecavam solidariedade: boa parte deles ainda era brizolista. Ou, genericamente, “de esquerda”.

      Um abraço

  2. Tudo meu
    São meus tios e meu pai, Deca, que não é nenhum Luiz e sim José Maria.
    Gerinho perdeu o medo, rs… ainda mantém a amizade.

    Passam todos muito bem.
    Abraços.

  3. Nassifi: dizer qualquer

    Nassifi: dizer qualquer coisa, quem quer que esteja fora do contexto do texto, é macular a doçura desta reminiscência.  Íntima demais. Porém, digna de registro pela sensibilidade. À propósito, bem que você poderia converter estas e outras (que tenho certeza existem) num belo livro. Quando publica-lo, avise, que desde já vou guardando uns trocos para adquirir o exmplar.

  4. Nassif, meu caro:
    O Gerinho

    Nassif, meu caro:

    O Gerinho deu boas risadas de suas lembranças, mas nega que tivesse medo de abortos. E acrescenta que teve certeza da deflagração do golpe quando soube da manifestação de marinheiros no Sindicato dos Metalúrgicos no Rio…

    Enfim, suas memórias e as dele não batem. É natural, passados tantos anos.

    Mesmo assim, acho que os dedo-duros de Poços não merecem o esquecimento. Soube, há apenas alguns anos, que Heleni Telles Guariba foi presa lá em março de 1970. Desconheço os detalhes da prisão, mas será que os dedo-duros tiveram alguma coisa a ver com isso?

    Quanto à nossa pretendida passeata, só lembro que havia outros interessados em participar, inclusive o Elis Ramos. Se não estou enganado, a ideia era caminhar em silêncio, com algum símbolo de luto (ou seria uma mordaça?).

    É possível que isso tenha ocorrido em 1966, pois em janeiro de 1967 viajei para o Rio, onde ficaria até o início de 1970. Depois fui com o Tonho para São Paulo.

    Lá, aos poucos, direta ou indiretamente, você “puxou” a turminha para o jornalismo, não é? Primeiro o Zé Roberto, que levou o Tonho, que levou o Zé Maria (Deca, meu irmão mais novo) e, por fim, eu. Em algum momento chegou o Tião Cabo Verde. Depois o Claudionor. Faltou alguém? Não sei se você também é responsável pela entrada do Murilo no jornalismo… Quando o reencontrei, era repórter do Movimento, nos anos 70. Em meados de 1986, o Nivaldo Manzano reuniu o Zé, o Murilo e eu na redação do Guia Rural. Bons tempos aqueles.

    Um grande abraço!

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