Despautério e distinção, por Eliseu Raphael Venturi

Neste artigo, Eliseu Raphael Venturi se debruça sobre a imagem suspendia da justiça da escrita

Oliviero Gatti. Three hands, 1619.

por Eliseu Raphael Venturi*

A imagem suspendia a justiça da escrita, não naquilo em que se poderia identificar a vigência da justiça da escrita – apenas para usar um termo vulgar e inaplicável, “vigência” – que se pronuncia no momento exato dos atos de escrita.

A suspensão é uma espécie de distração, daí o prazer em se colocar imagens de belíssimas pinturas [dos outros] como que em uma aproximação absurda do texto. Tratava-se apenas de homenagem às melhores estéticas dadaístas, e, também, para celebrar uma beleza que o texto não traria. Muito embora uma, a imagem, prescinda do outro, o texto, valendo o reverso, tal como um encontro breve e ridículo após o qual cada um realiza o seu mais íntimo desejo, cada um segue seu caminho, independente, como se nada tivesse acontecido – e, convenhamos, nada realmente aconteceu, apenas uma aproximação geográfica promovida pelo autor barthesiano, um deboche.

A imagem nunca se referiu a uma justiça nem tampouco poderia se aproximar dela. Justiça e imagem são contraditórios, embora se confira o valor de verdade ao que os olhos vêem, é justamente por eles que se incorre nos maiores erros e ilusões, basta se pegar emocionado por maçãs ou assassinatos pintados e que não passam de uma fina camada de minerais sobre uma fina camada de trama estendida refletindo luz, o todo refletindo um gênio, é verdade, mas nem se fale então do cinema, da televisão, e da forma mais desprezível de expressão humana, hoje muito popular, chamada “vídeo”, que é basicamente “eu vejo”, e isso sem qualquer hierarquia dos sentidos, para não retomar uma filosofia muito antiga que não teve o desprazer de assistir à profusão dos vídeos, mas já desconfiando da visão desde muito cedo, não à toa a caverna e etc.

A inaptidão da pessoa, sua falta de esperteza com os sentidos, sua distração incomensurável, extrairá o pior dos sentidos, em um sentido, ou, em outro, dos sentidos extrairá o melhor que há em termos de distorções, equívocos, absurdos; hoje temos muitos poetas do absurdo soltos por aí, verdadeiros artistas encapsulados em profissões diversas, muitas das quais, inclusive, se falem dos sinais gráficos da língua, desta mesma matéria prima de um texto e de uma escrita que concorre à justiça, o fazem com o mesmo material, mas produzindo essas mensagens com um tanto, poderia dizer: “despautério”, palavra muito bonita.

Hoje em dia quem não é basicamente um “desclassificado”, quem não inicia a corrida já tendo perdido, sendo desde começou um desclassificado e um inclassificável, é pessoa do dislate, do desconchavo, cheia de despautério.

E nem falo enquanto leitor, porque nisto o universo se perdeu, saiu da rota, colidiu com outras galáxias e produziu umas massas de poeira disforme que sequer lentes conseguem traduzir em cores saturadas ou definidas, porque é tudo sempre um cinza esverdeado, ou um verde acinzentado arroxeado, como bacias de plástico barato em que se juntaram garrafas de refrigerante diversas e outras quinquilharias de plástico, quase tudo o que existe, mas a imagem não é um problema de hibridismo, algo criativo quando não genial, é um problema de “indistinção”, senão vejamos quantas palavras perigosas, por isso é preciso dizer que nada vai de “elitismo” nisso, muito pelo contrário, até porque elitismos não estão nem aí para qualquer cuidado com a linguagem, é uma questão mesmo de, pasmem: justiça da escrita, ou de despautério diante dos atos que poderiam concorrer a esta.

Hermes, um tanto esperto, abre uma metáfora curiosa entre as dinâmicas do texto e da imagem, uma relação muito distinta, prazeres muito distintos, modos de consumir e fruir muitos distintos.

De qualquer modo, eu não queria me desgastar muito com especulações sobre relações já tão desenhadas historicamente, eu só queria viver o influxo da escrita naquilo que fosse minha, a despeito e apesar das máscaras e muletas temporárias (espero, sob pena de uma condenação perpétua à morte de si, nada mais cruel), ao compasso de viver o influxo das imagens, que não eram mais imagens senão grafismos, remetendo novamente às palavras, mas por um outro caminho que não do ideograma ou do pictograma, era uma relação diferente, um desenvolvimento que eu apenas me dedicaria a ver, a ser o veículo, muito provavelmente para não chegar a lugar algum que não passar pela erótica das formas, um prazer sem fim de especular coisas que não existiam naquela forma específica e que muito provavelmente irão se perder em um mesmo nada de todas as outras antes investigadas, passando por isso para chegar em outras formas, com estes saltos tão típicos do “espírito do nosso tempo” desfocado e despropositado.

Talvez fosse pelo cumprimento de obrigações antigas não revisadas, talvez fosse mesmo pelo sentimento de distinção, não estas condecorações cafonas e bajulações usadas para preencher uma amor impreenchível por estes rituais, mas sim uma distinção interior, daquele tipo que nos permite continuar a trajetória descendente com algum tipo de renovação – o que me parece mais do que convincente e suficiente.

*Eliseu Raphael Venturi é radicado em Curitiba-PR.

Redação

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