Dessas Terras dos Meninos Dos Mil Tiros

Às vezes, tenho a certeza, nada desse mundo irá vir a molestar-me os sentidos. Mas de repente passa um vento afrouxado que resolve deixar em mim suas sobras. E para não viver inchada, escrevo. Livro-me de. Assustar-me é tão frequente e dos modos assustados vou desfazendo-me, passando adiante esses sopros, de brisa ou de ventania. Como agora, ao deixar aqui alguns soltos vazados e agordados tiros. Mas ainda sem saber como começar, não quero esses barulhos, nem a perda de mim em nenhum lugar da palavra. Mas vou, porque esses tiros aparecem na memória e não são meus, senão dele e deles também. O conheço, o menino dos mil tiros, e indo para frente vos apresento também, e a todos: O Menino dos Mil Tiros. Mil! E ele é assim chamado porque aguentou o descarrego de toda essa quantidade magnífica de tiros.
 
Mas o meu conhecido, o menino dos mil tiros, ele é vários, são muitos os meninos donos do nome mil-tiros. Sei que outras pessoas também conhecem esses meninos, são até amigos e parentes deles também. E todos eles são assim registrados na certidão, que não é de nascimento, mas sim de enterramento, porque no final eles foram obrigados a mudar de nome. E ficaram derradeiros assim mesmo, como conto agora, sendo Meninos dos Mil Tiros. Bom, então, fui vizinha desse menino, e ele era forte feito instrumento, por isso encravelharam nele assim tanta bala. Um só tiro não bastava, ele era forte demais para morrer com tão pouco, e quem atirou era enfraquecido demasiado para poder matar com um tiro só.
 
Mas estou aqui a dizer desse menino por uma questão de memória, quando talvez o que quisesse fosse mesmo esquecer. Sou dos de cabeça dura, e lembro, lembro. Também por uma questão simples de justiça, imaginem que se eu reclamo de incômodo do mundo sobre mim, meu amigo menino dos mil tiros foi sacudido no quarto da própria casa. Ah! Mas não quero contar essa história, não quero falar em morte, porque quero estar leve. Mas estou cumprindo uma promessa, e devo chegar com ela até o fim, mas e se o fim tiver que atravessar cada um desses mil tiros? Respiro. Não, não deve ser esse o fim desse texto-promessa-memória. Será mais simples, e o fim estará apenas no menino em si, o final em si, e em constatar que há uma verdade nesse nome, Menino dos Mil Tiros. Pois ele continuará sendo nome atestado-declarado e emprestado também a outros meninos.
 
E eu agora estarei assim, ao escrever, autorizando um processo de batismo ao revés? Indo para o outro lado, escrevendo com água nas mãos, e a chave-resposta para o fim desse escrito é o menino assim mesmo, cru e cozinhado e caminhando com mãos abanando despedida? Esses meninos estão nascendo pelo avesso, indo ao contrário de. Resvalo. Começo a perder de vista o menino, ou seriam os meninos, e quais e quem são, e quem era o menino primeiro o qual memorava? Estão dando-me muita água, ou muito trabalho, e já não sei mais das quantidades de tiros, esses se dissolvem, e o que agora aparecem são muitos meninos. Mas meninos menos pesados, menos pregados, têm blusas sem marcas, limpas e brancas. Os vejo, e eles podem até ousar um sorriso, porque deixaram cair na terra os mil tiros. E terras são molhadas, todos os dias.
 
Um Escrito Arejado
 
Queria escolher um novo poço de escritos, no qual em algum momento fundo mergulhei, para poder encerrar e gracejar o encontro de hoje. Queria um até logo que não fosse brusco e penoso, busquei em minhas palavras, mas nenhuma me convenceu. Porque ainda é algo estranho: outros estão lendo meus escritos íntimos, isso que é em mim casa-e-pão e café reservado. Estou abrindo ao espaço o baú-de-letras que nunca teve outro caminho senão para dentro de mim mesma. Foi tal como aconteceu outro dia, ao constatar a existência de: a lágrima interna. E essa lágrima-interna faz-se estar quanto mais e mais anos juntamos entre coisas vividas, por ter-se a necessidade de não expor fortes evidências. Mas mesmo que tudo aponte a uma entrada encaracolada, de letras ou de lágrimas, estou no intento desse inverso, estou saindo. Estou soltando o ar.
Redação

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