Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Dominó de botequim, por Rui Daher

Por Rui Daher

A oferta do Buqué de rifar o Rolex de ouro para ajudar o Serafim e reabrir o Dominó precisaria ser melhor discutida. Vai que tivesse sido impulso ocasional, raiva momentânea pela violência que é um chute na bunda depois de tantos anos dedicados a um trabalho, que mais tarde pintasse arrependimento.

Aproveitando a reunião combinada sobre o paradeiro do português e demais providências, combinei com Osorinho expor a proposta do Buqué.

– Seria bom se pudéssemos contar com a presença de mais gente, aumentar o time, eram tantos os frequentadores do boteco.

– Pois é, Zilá podia chamar o filho, Magrão do Skate; irmos até a quadra da Imperador do Ipiranga e localizar a Neide Celebração; ligar para o Gravetinho, no Estadão.

– Difícil. A dupla de PMs, Gilmar e Castilho; Virgílio, o vendedor de carros; o pessoal da Federação de Dominó.

– Não custa tentar.

– Sem dúvida. Só acho que o Buqué não deveria vir.

– Concordo.  

O domingo amanheceu cinzento, outonal, frio. Acordei com a imagem do gol que o Messi havia marcado na vitória sobre o Athletic Bilbao, tornando o Barcelona campeão da Copa do Rei. Refiz inúmeras vezes a jogada. Não me colocava no lugar do argentino, mas de seus incrédulos adversários, tão honrados quanto o autor da obra-prima.

A Cida, megera do Osorinho, depois de insistentes pedidos e da promessa de que não haveria álcool, havia conseguido o salão de festas da paróquia para nosso encontro. Não me perguntem o que ele deu a ela em troca.

– Mas, Osório, qual o problema com o álcool. Eles não vivem lá fazendo festas de casamentos, batizados?

– Sossega. Já falei com o padre Luís. Ele disse que vinho pode.

Meno male.

Quando cheguei no salão o Netinho já estava lá.

– Não estou gostando da disposição de mesas e cadeiras.

– Verdade. Está mais para reunião de condôminos do que para amigos se organizando para reabrir um botequim. Vamos mudar o cenário, Netinho.

Osório financiara a compra dos vinhos. O ajudante dissera entender do assunto. Fez curso de três meses com o garçom de um restaurante da Galvão Bueno, que se dizia sommelier.   

Marcada para as dez horas, começou às onze. Todos que foram à primeira reunião estavam lá. Dos novos convidados, só veio o Magrão do Skate.

Netinho foi o primeiro a falar:

– Amigos do Dominó de Botequim, graças às conexões do Dr. Prudêncio, encontramos o Serafim e fui conversar com ele.

– Conexões, não, contatos, protestou o ex-militar.

– Desculpe doutor, contatos. Ele mora mesmo em Marsilac, não mais com aquela mulher, mas numa pensão-cortiço.

– Pobrezinho, suspirou Virgínia. Aposto que nem panela ele tem para protestar. E o que achou de nossa ideia?

– Chorou. “Façam o que quiserem; trabalhar eu quero e preciso”.

Ninguém se pronunciou. Esse negócio de tristeza é esquisito. Corta o papo de forma instantânea. Precisa de intervalo. Somente um pouco ou muito mais tarde é que se traduz em choro, expressões, poesias, livros.

Nonato João cortou o silêncio:

– E do resto, rolou alguma coisa?

– Eu e o Filga fomos visitar o imóvel abandonado, disse Virgínia. Uma lástima. Não deu nem coragem de procurar saber da situação na prefeitura.

Tomei a palavra:

– Bem, acho que, para uma semana, andamos bastante. O Serafa foi localizado, sabe de nossa ideia.

Osorinho pede um aparte:

– Precisamos agradecer ao Padre Luís, aqui presente, que nos cedeu o salão da paróquia para esta e próximas reuniões. Padre, se nos permite, acho que já podemos servir o vinho que o senhor compartilhará e o Senhor abençoará.

Logo vi que Cida treinara bem o Osório na retórica católica.

O Padre aquiesceu com as mãos postas como fazem os católicos ao rezarem o Pai Nosso. Todos disseram amém e mandaram ver.

Um senão: a garrafa de “Lua Cheia”, que Nonato João escondia num saco de papel marrom, à moda dos americanos.

Voltei:

– Eu e Osório também temos uma novidade. Das grandes. Fomos conversar com Buqué, despedido da firma dos Tonello. Pois bem, ele está puto, com o perdão da palavra, padre, mas, pasmem, ganhou o relógio de ouro que, com mais um ano na firma, faria jus.

Cortei o “Ohhhhh” geral e continuei:

– Calma! É realmente surpreendente. Mais abestados vocês ficarão com o destino que ele quer dar ao prêmio. Rifar e bancar a abertura do Botequim do Serafim.

Assim como grandes tristezas também grandes alegrias fazem gagas as emoções. Creio que está aí o sucesso das novelas da Globo, cada capítulo uma gaguejada.

Foi quando Magrão nos chamou à realidade:

– E o que nós, um bando de durangos, analfabetos em taras de gente rica, vamos fazer com um Rolex de ouro? Vamos comprar as rifas? Vender para amigos ainda mais duros do que nós? Correr o risco de acharem que roubamos o relógio de alguém que bronzeia o antebraço nos guetos de luxo?

O Padre Luís sorveu um longo gole de vinho, pousou o copo numa mesinha, suspirou, aproximou-se de Nonato, e com uma piscadela para o saco de papel, pediu uma bicada na “Lua Cheia”.

Zilá desembrulhou os pasteizinhos que havia trazido, e fomos mudando de assunto, cada um pensando em como sairíamos dessa.

A noite seria de “Lua Cheia”, nós e as nossas certezas, também.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

7 Comentários

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  1. ☆☆☆☆☆
    Rui,

    neste domingo, também amanhecido cinzento, outonal e que me enregelou, tua crônica é como vinho aquecido.

    “A tristeza corta” mesmo o papo, nos torna gagos, mas não surdos e cegos. Felizmente, pois que a esta beleza de crônica – uma ode à simplicidade da amizade e ao comezinho dos nossos dias e nossas preocupações – palavras e canção se achegam, tornando-a um prazer na manhã fria.

    Corri a pedir à minha mãe que me conforte com uns pasteizinhos e sorri, sentimental, ouvindo a Canção de Marcelino.

    Esta então é a dádiva da crônica! Parabéns e obrigada.

  2. Cronista Del Rey,

    Rolex é cilada.

    Pasteizinhos podem relmente rechear amizades.

    Ainda mais com vinho, dominó e botequim fraternos.,

  3. Mas os anjos são vocês!

    Muito bem, Rui. Ja pode se apresentar para o Gilberto Braga e o João Ximenes Braga e ajuda-los a escrever Babilônia. Que tal um botequim na navela pseudo-chic da globo? Em todo caso, estou interessada nos proximos capitulos de Domino de botequim e torço pela reabertura do Domino e do Serafim. 

  4. Se já existe o “ponto” ficou

    Se já existe o “ponto” ficou fácil.

    Mil bilhetes a 50,00 cada sobra

    até pro recheio.  Me reservem 2 bilhetes

    e preparem os convites de inaguração.

    O bilhete não premiado vale uma cerveja.

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