Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Dominó de Botequim, por Rui Daher

Rua do Porto, Piracicaba/SP

Por Rui Daher

Antes de entrarmos no espaço sagrado da paróquia de São José de Belém, fundada em 1897, com os vinhos permitidos pelo Padre Luís e os disfarces canavieiros que trazíamos, peço licença para falar de um amigo do Serafim pouco conhecido do Dominó. Assim como a portuguesa de Marsilac, de quem só o Netinho sabia, o médico de Piracicaba, Dr. Teodoro Toledo, o Tetê, era convívio apenas do Osorinho.

Tetê se formou na UNESP, em Botucatu, e foi clinicar em Piracicaba, justamente onde Serafa fez sua primeira incursão na área gastronômica, o “Travessa Pessoa”, restaurante de comida portuguesa. Sim, referência ao poeta Fernando. Servia bacalhau à moda dos heterônimos do genial lusitano. De seus fornos, brasas e frigideiras saíam Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caieiro, Bernardo Soares, e algumas alheiras menos conhecidas.

O português e Tetê se conheceram no “Travessa”, ficaram amigos entre vinhos do Douro e do Alentejo e, por óbvio, paciente e corretor de saúde,

Não durou muito o empreendimento. Pira é uma cidade de jovens, não muito afeitos a salgas. Surubins, filhotes, tambaquis, pintados e insuportáveis salmões, voaram de outros rios e mares para caírem nos restaurantes-quiosques da Rua do Porto, à beira do rio Piracicaba. O movimento caiu e o “Travessa Pessoa” cerrou as portas.

Extremo somatizador de emoções, Serafa caiu doente e o Dr. TT, assim jocosamente apelidado por seus alunos quando nos bares da cidade, cuidou dele. Um estudante da ESALQ até se propôs, vez ou outra, visitar o português, que vivia sozinho.

O esalquiano Marcelo era sobrinho do Osorinho. As visitas se tornaram mais frequentes e logo ele se afeiçoou ao Serafa. Gostava de ouvir as histórias sobre Portugal, da aldeia no Aveiro, os motivos da vinda ao Brasil, e a saudade da terrinha. Numa visita do tio a Piracicaba, fez questão que ele conhecesse o português.

Todos se tornaram amigos e convenceram Serafim a voltar a São Paulo para continuar no ramo. Ajudaram-no a abrir o Dominó, e qualquer que fosse o resfriado do português o médico consultado continuava em Pira.

Volto ao salão da paróquia assim como logo o Dr. TT voltará ao nosso convívio.

Confesso surpresa. Presença maciça. O pessoal se virou, se comunicou, acessou a burocracia paulistana, não sei se através de apliques digitais ou ciclovias. Não devem ser descartados os vinhos indicados pelo padre, a curiosidade pelo Rolex ou, simplesmente, fuga da merda que é nosso cotidiano.

Verdade é que estávamos todos lá.

Osorinho, o professor Filgueiras, o ex-militar Prudêncio, Virgínia, Nonato João, Netinho, Dona Zilá, Magrão, Buqué, com o tesouro que seria apresentado, e o “Especialista”, Virgílio, de olhos vidrados.

Padre Luís afirmou questão de estar presente. Rezaria as missas das 07:30 e 19:00 horas, e pediria ao Padre Márcio substituí-lo na das 11. Devotos que somos, demos causa à solidariedade cristã, e não aos vinhos trazidos por Prudêncio e os salgadinhos de Zilá.

Às dez horas, demos início aos trabalhos com relatórios individuais. Lembrei-me dos meses em que trabalhei num tabelionato e burocratizei os relatos:

– Filgueiras, o que tem para nos contar?

– O imóvel abandonado ainda está em nome de Serafim de Oliveira Delgado. Só falta pagar os impostos atrasados. Podem ser parcelados. Depois é só tratar da papelada para ali abrir uma casa comercial. A zona permite, o ponto é bom, não muito distante do anterior.

– Ótimo. E o general Prudêncio?

– Pedi que um empreiteiro, meu amigo, fosse lá e fizesse um orçamento de reforma. Com cento e cinquenta mil reais é capaz de deixar o local arrumado como uma caserna.

Não resistiu, olhou para Virgínia, e deu uma piscadela.

– O risco de ficar como uma caserna é encher lá de homens desocupados, fulminou a cientista política. Nonato João aproveitou a deixa e cantarolou: “Há soldados armados, amados ou não/Quase todos perdidos de armas na mão/Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição/De morrer pela pátria e viver sem razão”.

O tempo já ia esquentar quando o Padre Luís jogou água fria na fervura:

– Irmãos, lembrem-se, temos uma causa maior pela frente.

– Magrão, alguma coisa?

– Estive verificando e, hoje em dia, não é difícil conseguir equipamentos, tipo freezer, balcões frigoríficos, fornos, toldos, tudo sem custos, dando exclusividade a algumas marcas fornecedoras.

– Virgínia, Nonato, o que rolou com vocês?

– Uma porra de uma gravidez! Fiquei sabendo que estou grávida de um cordelista e temo que ele queira pôr o nome de Fogo Encantado no menino ou Maria Ivonete na menina.

Pensem livre. Como dizia Millôr Fernandes, “livre-pensar é só pensar”, e então imaginem o banzé que tomou conta do salão da paróquia.

Pulamos o Netinho, que contara ter falado no telefone com um Serafa ansioso e curioso, o Buqué entregou o Rolex para guarda do padre, esquecemos o “Especialista”, e fomos para os vinhos e salgados.

No jardim externo da paróquia, entre palmas ali plantadas para o próximo Dia de Ramos, erguia-se um estranho canavial.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

14 Comentários

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  1. Dos comes-e-bebes do Belém, à morte(prematura) de Fernando Brant

    Entre as “Travessias” da vida, poucos são os “Amigos” inesquecíveis, que podem fazer parte desta lista de amigos do roteirista deste blog, porém houve um, que além de ter sido um dos melhores escritores de canções inesquecíveis da MPB, foi a base das fundações musicais de muitos dos nossos principais intérpretes, dos quais o “Pituca” Milton Nascimento, foi o mais brilhante, que foi o recem-falecido, Fernando Brant.

    Que São José, do Belém, ou da Costa Rica, este um dos padroeiros do falecido escritor, receba-o efusivamente, no céu.

    Bom domingo, ao dono da página do blog, e aos seus “amigos” do Botequim, que hoje, vão sorver um vinho meio que amargo, num cálice do qual o dono do “espaço” não afastou-os. Que este vinho, mesmo sendo da melhor safra portuguêsa, seja tinto porém suave, e sem o sabor de sangue.

    1. Meu caro Raí,

      No caso de Fernando, impossível evitar o chavão. Ele se foi e sua obra é parte de um Brasil que nossos ideais lutam em continuar construindo. Aprendemos isso em tantas frases de Ivone Lara a Paulo César Pinheiro que, como nós, um dia, partirão com a felicidade de ter compreendido as belezas deste pedaço iluminado de chão. Nossa “Travessia” não terá sido em vão. Abraço.

    2. Não é “pituca”

      Rai,

      Não… é “Bituca”

      O apelido de Bituca é porque ele estudava no grupo, como se chamava na época, eu não sei se é assim ainda, e um amigo dele bateu na porta de casa chamando pelo Bituca – isso foi minha mãe que me contou. Aí ela falou: “Quem é Bituca?”. “É o seu filho Bituca.” “Mas por que Bituca?” “Ah, porque ele é Botocudo, então, para ficar mais carinhoso, Botocudo ficou Bituca.”(Elizabeth Silva Campos do site Clube da Esquina.)

      Um bom domingo prá voce e ao Rui do “boteco”

  2. Rui, fico imaginado cada um desses pratos de bacalhau oferecidos

    na Travessa Pessoa.

    Delícias no cardápio:

    Por exemplo:

     À ÁLVARO DE CAMPOS (teria que ter a alma de):

    Dobrada à Moda do Porto

     Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, 
    Serviram-me o amor como dobrada fria. 
    Disse delicadamente ao missionário da cozinha 
    Que a preferia quente, 
    Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria. 

    Impacientaram-se comigo. 
    Nunca se pode ter razão, nem num restaurante. 
    Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta, 
    E vim passear para toda a rua. 

    Quem sabe o que isto quer dizer? 
    Eu não sei, e foi comigo … 

    (Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim, 
    Particular ou público, ou do vizinho. 
    Sei muito bem que brincarmos era o dono dele. 
    E que a tristeza é de hoje). 

    Sei isso muitas vezes, 
    Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram 
    Dobrada à moda do Porto fria? 
    Não é prato que se possa comer frio, 
    Mas trouxeram-mo frio. 
    Não me queixei, mas estava frio, 
    Nunca se pode comer frio, mas veio frio. 

    Álvaro de Campos, in “Poemas” À RICARDO REIS: (doce como flor)

    A Flor que és

    A flor que és, não a que dás, eu quero.

    Porque me negas o que te não peço.

    Tempo há para negares

    Depois de teres dado. 

    Flor, sê-me flor! Se te colher avaro

    A mão da infausta esfinge, tu perere

    Sombra errarás absurda,

    Buscando o que não deste.

    À Alberto Caeiro: (com um cheiro e um sabor de noite)

     

    Acordo de Noite

    Acordo de noite subitamente,
    E o meu relógio ocupa a noite toda.
    Não sinto a Natureza lá fora.
    O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.
    Lá fora há um sossego como se nada existisse.
    Só o relógio prossegue o seu ruído.
    E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha mesa
    Abafa toda a existência da terra e do céu…
    Quase que me perco a pensar o que isto significa,
    Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
    Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significa
    Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
    É a curiosa sensação de encher a noite enorme
    Com a sua pequenez…

    À Pessoa, o Fernando- (algo como o mar de Portugal, cheio de venturas, sabores vários e espelhando o céu)

    MAR PORTUGUÊS

     

    Ó mar salgado, quanto do teu sal
    São lágrimas de Portugal!
    Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
    Quantos filhos em vão rezaram!
    Quantas noivas ficaram por casar
    Para que fosses nosso, ó mar!

    Valeu a pena? Tudo vale a pena
    Se a alma não é pequena.
    Quem quer passar além do Bojador
    Tem que passar além da dor.
    Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
    Mas nele é que espelhou o céu.

     

    1. Não tenho coragem

      de agradecer-lhe Odonir, mas de homenageá-lo pelos presentes oferecidos ao Serafim. Talvez, assim, ele pense em voltar a Pira e reabrir o “Travessa”. Isso é tudo muito lindo. Maravilhoso domingo procê,

      1. Mas é pra isso mesmo, Rui, pra fazer você a cada domingo passar

        por aqui e nos contar as últimas.

        Ah, Rui, é sou a Odonir.(substantivo feminino)

        Abraço.

  3. Fernando Brant, Zito e…

    Uma boa semana a todos, se é que é possível ser boa, depois de sabermos da morte do Zito, que depois de ter dado tantos títulos e glórias ao Santos e à seleção brasileira(dos tempos em que esta seleção, não era um “trunfo” no baralho da Globo e da Trafic, para desviar dinheiro) morreu pobre e com uma reles aposentadoria do INSS, e um salário de fome, do Santos, no qual trabalhou até recentemente, como um simples funcionário, e…

    Ainda bem, que ainda temos viva, a Dona Yvone Lara, que está sendo homenageada em vida, pelo Instituto Itaú Cultural, com uma retrospectiva histórica de suas vida artística, sua musicalidade afro-brasileira, e seus bons momentos de botequins cariocas. Imperdível.

      1. Conhecí sua obra

        No dia 11 p.p, eu e minha turma de estudantes de sociologia(olha que chiquê !) da UNATI- EACH-USP/Leste, fomos visitar a exposição que o Itaú Cultural, está fazendo e homenageando(o aniversário) da Dona Yvone Lara, e foi simplesmente encantador, conhecer a vida e a obra musical, desta dama do samba.

        E olhe, que não é fácil, um “velho” roqueiro, como este escriba, confessar, que mesmo por algumas horas, gostou de samba de raíz.

  4. Eita semaninha ruim !

    Rui e amigos, frequentadores e/ou apenas observadores, de quem como eu, adoro um “papo de botequim” com dominó ou similares, desde que haja umas branquinhas, loiras… Ops, tô falando de bebidas !

    Mas que semana, hein ! A seleção brasileira do Dunga e seus enganadores jogadores, perde da discutível Colombia;

    A nossa (quase) imbatível seleção de vôley, tropeça(por excesso de salto alto) diante da disciplinada seleção Sérvia;

    Na partida seguinte, parece ter desaprendido, a jogar, e perde também, desta vez, para a Itália;

    Na madrugada de sábado, a nossa promissora(e ainda não contaminada pelos Euros e Dólares da vida) perde a final, para uma desacreditada e pouco comentada, selação “também” sérvia;

    Por aqui, o meu tricolor, “tem que fazer caixa” e vender 1/2 time titular, e ainda corre o risco, de perder(junto com o Corinthians)o passe do Pato, quando lidera o Brasileirão, e “castra” o novo técnico Osório;

    Na política, assistimos ao maior constrangimento nacional, com este verdadeiro circo de horror, da ida de 8 patetas, digo Senadores, para agitar na Venezuela, e de lá serem quase expulsos, desmoralizando nossos Congresso e diplomacia;

    Agora, estamos vendo uma explosão de fúria e sede de sangue, do juíz Sérgio Moro, que mandou prender 2 de nossos maiores empregadores, e com estas prisões, a paralização das obras que eles tocavam,e a ameaça de fazê-los confessar num regime criminoso de delação premiada, a políticos petistas, até aqui, blindados.

    Se isso, não for o fundo do pôço…

    Seu Manuel, desce mais uma loira gelada, e um pouco de amendoim, uns torresminhos, uns…

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