Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Dominó de botequim, por Rui Daher

Chego ao “Rei das Batidas” e encontro Virgínia e Nonato João na calçada. O clássico paulistano das mesas indisponíveis.

Ela tomava uma batida de coco, ele de carambola. Peço uma “Boazinha”. Nunca me permiti misturar cachaças seja lá com o que for. Devem ser apreciadas puras. Todas as frutas do pomar de Adão e Eva já estão lá, como nos “puros” da Ilha invencível estão todos os aromas folhosos.

A decisão pela marca, talvez de forma inconsciente, tenha homenageado o excelente corpo de Virgínia. Sei lá se o casamento, a Bolívia de Evo, o doutorado em Ciências Políticas, algo fez da mirrada mulata uma autêntica bombshell latino-americana imbricada na OTAN.

Já o cordelista parecia meio abatido. O casamento, por certo. Ele negou:

– Queria o quê? Não vê como anda a cena cultural no Brasil?

Desconversei:

– Virgínia, sugeri a Waldemar Ferreira para o caso de você ter aula hoje à noite. Já fica no rumo.

– Nada! Se na graduação da fefeleche as aulas já são poucas, no mestrado menos ainda, quando chega no doutorado, nenhuma. O cara, se vem, passa uma bibliografia brava e tchau.

–  Vocês têm visto o pessoal que frequentava o boteco?

– Alguns. Liguei para vários, por causa do Serafim. Faz uma semana fui almoçar no “Fi-lo porque Quilo”, aquele restaurante da Lacerda Franco, com o Buqué, o tenente Prudêncio e o professor Filgueiras. Contei a história e todos se comoveram.

– Virgínia, você não deve ser mais assistente do Filgueiras.

– Não. Depois que ele foi demitido como trompista da OSESP, ajudei-o a retomar um livro que escrevia há quase 12 anos sobre a trajetória dos mamelucos no Brasil. Até que parti pra Bolívia. Na verdade, o texto tava mais para o maluco do que para o marmelo, se você me entende.

– Entendo.

Por alguns instantes, desligo-me da conversa. A visão dos formidáveis mamilos de Virgínia me remete àquelas couraças que os produtores da Globo inventaram para esconder os seios de suas lindas repórteres. Nenhum biquinho avançando contra a câmera, uma geometria mais exposta, imaginem alguma transparência.

Na volta, com medo de ter perdido algo importante, meto (êpa!) uma cunha na conversa:

– E o grande Buqué, ô Nonato, já ganhou o relógio de ouro?

Ele sorri:

– Falta um ano. Caga de medo da tal terceirização.

César Rodendro de Albuquerque vinha ao boteco nos quartos domingos do mês para pagar parcelas de uma dívida com o Serafa. Há 27 anos trabalhando numa empresa média, familiar, que fabricava peças para bicicletas, suas ameaças de cair fora morriam na esperança de completar os 30 e ganhar o relógio de ouro prometido pelo patrão.

– Diz dever algumas parcelas da dívida com o português e sofre com a desonra do possível cano no Serafa.

– Prudêncio?

– Dele fala melhor a Virgínia. Eu quero ver esse milico no inferno.

Nonato sempre foi “vermelho”. Raivoso, mais ainda.

– Nonato, meu Pernambuquinho gostoso? Já não chega ter escrito aquele cordel com todas as rimas terminando em U, para invadir o Clube Militar e cantar para o Prudêncio na frente de todo mundo. 

Caio na risada e contemporizo:

– A Virgínia tem razão, cara. Os militares estão na deles. Não podem nem ouvir falar de manifestação, Avenida Paulista, volta ao poder. Puta saco tomar conta deste país. Melhor podar árvores em quartéis, pintar meios-fios de calçadas, marchar no Dia da Independência.

– Não se trata disso, amigo. O velho da porra, decrépito e desfardado, não para de dar em cima da minha neguinha. Além de reaça, o filho da puta é depravado.

– Pode ser, meu querido, mas escrever um verso rimando Virgínia com vagina não foi ele quem fez.

Sentindo o clima, sugeri:

– Olha, vagou uma mesinha ali. Vamos sentar e falar do Serafim.

– Há uns três meses, fui a um samba ecumênico no Cambuci, organizado por um jornalista e um tal de Hortêncio. Vieram uns caras da Vai-Vai, chorões, um quarteto de cordas, e uma turma da sanfona, xote e xaxado, como eu.

– Legal. Você gostou, Virgínia?

– Ela não foi. Achou mais interessante ler György Lukács, um marciano do século passado.

– Continua, Nonato.

– Como era muita gente, uma puta feijoada e rios de chope, tiveram que contratar garçons para o serviço. Foi quando reconheci o Serafa, ali servindo. Fez que não me reconheceu. Fingi o mesmo, para não embaraça-lo.

– Que merda.

– No dia seguinte liguei para seu antigo ajudante, Netinho, a ver se ele sabia de alguma coisa. Pouco. Depois que o portuga ligou do exterior, mandou fechar o boteco e alugar o imóvel, somente falou com ele mais duas vezes.

– E o que rolou?

– Na primeira, o Serafa disse que pensava abrir um restaurante em Aveiro. Até nome já tinha: “Feijoada Lusófona”. Queria o Netinho para gerenciar o estabelecimento. Depois, ligou para reclamar que há oito meses o aluguel do imóvel, em que antes ficava o boteco, não era depositado na conta por ele indicada.

– Então, a coisa pegou?

– O Netinho contou que os caras tinham fechado a loja de materiais de macumba e se mandado sem pagar. O imóvel estava vazio e interditado pela prefeitura. Foi a última vez que falaram.

Depois da sexta dose de “Boazinha” e tomado pelos prováveis pensamentos do tenente Prudêncio sobre Virgínia, exclamei:

– Isso requer uma assembleia urgente dos “Amigos do Dominó do Serafim”.

Na Waldemar Ferreira, do táxi, podia ver o semáforo piscando entre o vermelho e o amarelo intermitentes. Cores de um rótulo. Compostas, lembrariam os reflexos no corpo da doutoranda em Ciências Políticas.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

3 Comentários

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  1. Os nossos domingos, voltaram a ser iguais aos de antigamente.

    Bom dia Rui, e amigos do blog.

    No início deste fórum de de debates, que insisto em chamar de democrático, apesar da invasão de muitos trolls(culpa da liberdade excessiva que o Nassif resolveu praticar…)era comum nos domingos, o dono do blog, brindar-nos com seus contos e “causos” a maioria advinda de sua infancia, adolescência em Poços, e suas relações familiares, nem tão amistosas, com seu pai e contemporâneos, e sua vinda para Sampa, e seu ingresso, nesta ingrata e difícil profissão de jornalista, porém ultimamente, ele deixou de escrever suas crônicas, só agora recomeçadas com sua colaboração, que não poderia ser mais parecidas no contêxto e nas colocações.

    Confesso, que depois da morte do Lourenço Diaféria, que foi o precursor destas crônicas cotidianas que têm a “cara” de Sampa, ninguem conseguira chegar tão próximo daquele mestre, a quem admirei tanto, e segui-o, em toda sua carreira jornalística de contador de casos do cotidiano, com este sabor  típico de boteco, aonde encontram-se os nossos contemporâneos e companheiros de luta e de apreciadores de “Boazinhas” e outras, alem do dominós da vida.

    Por isso, repito, os nossos domingos, após a sua contratação pelo GGN, voltaram a ter o velho e bom gostinho paulistano, de domingões preguiçosos.

    1. Raí, faz um tempo vinha cobrando do Nassif essa tradição do Blog

      Nesses últimos tempos, anos, de emergências salvacionistas , temos esquecido as narrativas, as poesias, as criações.

      Nada como “um caderno B” pras agruras do dia a dia.

      Esse texto do Rui, no cenário do “REI’ , faz uma foto panorâmica dos tempos. Desses e de outros.

  2. Obrigado, caro Raí

    creio que o texto deveria ter sido postado num suposto blog que eu teria no GGN. Você tem razão, quando escrevi esta série no Terra Magazine, a inspiração veio de vários cronistas de São Paulo, entre os quais o Diaféria, pois na crônica o predomínio sempre esteve com mineiros e cariocas. Claro que não me comparo a nenhum deles, mas me diverte escrever essas histórias e fico feliz de saber que você me acompanha.

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