Editoração, por Eliseu Raphael Venturi 

Quem encontra um Editor, encontra um tesouro, mistura de santo, deus, pai, grande leitor

Imagem do autor, 2018.

Editoração

por Eliseu Raphael Venturi*

Quando um autor lhe confia um texto, ele lhe confia um bem material e imaterial. O bem material é um ordenado de frases, diga-se, coerente e coeso, que não brota de um algoritmo, ou de gotas da chuva no cimento seco; trata-se de um texto presumidamente único que decorre de um exercício mental e de uma prática reiterados, de outras mil leituras, outros mil processos de avaliação e processos seletivos, outras mil escritas, estudos, trajetos, filmes, músicas, silêncios, medos.

Então, um texto pode ser um bem material razoavelmente valioso se for visto como expressão de investimentos pretéritos, ainda mais em um país de educação e livros caros (ambos beirando a extinção), embora o leitor nem necessária nem obrigatoriamente deva valorá-lo como tal, porque o valor material de qualquer coisa possui uma série de variantes tais que permitem distinguir vidro de diamante, ou de giz, ouro de níquel e etc.

Os autores sabem que valem mais, ou menos, mas como pessoas, entes abstratos, estariam sujeitos, em um estado normal de temperatura e pressão das coisas, a algum princípio de igualdade e de dignidade que os permitiria um tratamento de consideração, fossem gênios consagrados, fossem borra-páginas desconhecidos que conseguem três ou quatro curtidas em redes sociais.

Ao mesmo tempo, a dimensão imaterial de um texto simples, ou um pouco elaborado, é algo em torno a um autor metafísico já historicamente morto há bastante tempo, mas que sobrevive no senso comum inclusive bem-letrado, a uma instanciação de vozes por meio do manejo de alguém que se lança como scriptor, algo também em torno a alguma orquestração, ou colagem, ou, vá lá, até mesmo alguma bricolagem, dependendo do objeto do texto.

A verdade é que há um ato de entrega do texto e um ato de recepção que demandam algum tipo de cuidado. Porque um bom autor, ou um bom scriptor, um bom pastor ou uma boa ovelha, todos estes, por meio das suas idiossincrasias, desejos estilísticos, limites e ousadias, sempre operam com algum limiar de respeito por seu leitor, algum espaço de preenchimento, várias lacunas para construções do outro lado das palavras e, até no excesso de ironias, alguma consideração pela visão de mundo alheia. Servem uma mesa, para usar um clichê. É um tanto universal, por incrível que pareça até à cobra que ingere ovos com lágrimas no canto do olho.

Quando essas bases operacionais são rompidas, temos editores que mudam os termos do autor e os comentários deletérios de redes sociais, os textos ditos tóxicos, e essas coisas que circulam o tempo todo pelas telinhas e que podem, por sua falta de fundo ético e estético, serem reputadas como uma coisa erroneamente nominada de próximo ao lixo ou excretas, embora se saiba que há muito lixo bom e muita excreta virtuosa, pois se vive em um mundo em que até há quem admire o flato da amada ou do amado.

Das crises em que se vive, basicamente de todas as ordens, como um adjetivo universal, há uma crise da escrita que passa não só pelo autor, como dito, muitas vezes desrespeitoso, como também pelas editorações, sejam as científicas, sejam as jornalísticas, sejam os outros destinatários de textos, hoje em dia quase tudo é perpassado por essa submissão de tecidos. É muito mais do que o copia-e-cola que arrasou gerações, ou da grandiloquência, ou do juridiquês, ou da redundância infinita.

Então, se pode voltar ao início do texto, deste texto: quando um autor lhe confia um texto, há muito mais ali do que um mero texto, ou uma pessoa, ou uma vivência – o que, por si, pareceria o suficiente para haver mais consideração por essa figura do conhecimento.

Não é raro haver um todo de textos engavetados em editorações, submissões sem respostas (nem um “sim” feliz, nem um “não” educado), o que pode ser um tempo curto e fatal, por exemplo, no caso da crônica, que, hoje em dia, se perde ao vento em menos de vinte e quatro horas, ou pode ser um artigo dito científico, cuja onda do assunto pode passar em poucos meses, ou cujo estado da arte pode se redirecionar sensivelmente também em pouco tempo.

As editorações podem alegar excesso de submissões, falta de recursos humanos, e situações do gênero que assolam os Poderes da República e as burocracias públicas e privadas, de um modo geral, há muitos expedientes. O mundo vive um interessante estado de haver muita gente e pouca gente em quase tudo, crises de qualificação, crises de produto, crises de produção, urgências de enxugamento, chefes caricatos e centralizadores que travam fluxos e processos, e assim por diante, em uma fauna-flora.

Crises de editoração e crises de informação, crises de comunicação. Tudo isso é possível, certamente, ocasionado desde a primeira fake news dita pela criança mentirosa, coisa que jamais acontecera na era de ouro das instituições sérias, certamente. Mas aí, para finalizar, poderíamos voltar ao começo do texto, repensar as excludentes das antijuridicidades todas da editoração.

Quem encontra um Editor, encontra um tesouro, mistura de santo, deus, pai, grande leitor. Há muita indiferença, falta de consideração, desrespeito mundo afora, da grande à pequena política o ser humano consegue desqualificar os animais e ser muito peculiar na arte de ser desagradável.

Qualquer escritor, autor, ou scriptor, já entendeu que em um mundo onde nada se lê, um mundo débil de decodificação e, quem dirá, de interpretação, pouco há o que se esperar, senão os pequenos milagres das breves interlocuções e uma enxurrada de sentidos trocados sem gabarito, desviados sem destino, dardos sem alvo, sem contar a maldade pura e simples, mesmo.

O que posso dizer é que sempre se olha enviesado à editoração indiferente, é dizer, duvida-se de tudo o que ela produz doravante se constata que ela é mais uma engrenagenzinha em um mundinho deplorável. E, devo confessar, geralmente tais engrenagenzinhas-soberanas são críticas e combativas, já vi até algumas que se identificassem com a Democracia, vejam só! Não é raro, sabe-se bem, Pregadores que não praticam as preces. Há aí um interessante paradoxo antigo muito conhecido.

Seja como for, escritores prosseguem, porque foram bem advertidos por Bukowski: “se o fazes por dinheiro ou fama, não o faças”, e porque são acometidos pela doença da textura, que é tátil. Escritores até escreveriam cartas, crônicas ou artigos aos seus editores indiferentes, mas, vejam, eles sabem que não foram lidos e não o serão novamente lidos. É uma relação frustrada. Editores odeiam escritores combativos, embora se vangloriem dos produtos combativos que, pelas capilaridades, chegam à publicação.

Avaliar e editorar é uma missão grandiosa. “Combativo”, “Ativista”, adjetivos pra lá de engraçados. Uma vez uma pirralha me falou algo sobre “escrita coletiva”, que era um jeito de a pilantra se apropriar de textos alheios. Há toda uma natureza em paisagem a ser explorada nestes buracos de queijo.

Uma parte da crise do mundo é uma crise da leitura e uma crise da escrita, assim como uma crise da editoração; a linguagem barata demais é linguagem alguma, mas ela está aí, há textos demais submetidos, repetem. O herói pós-moderno pós-contemporâneo pós-verdade e pós-humano que desejar salvar o mundo passará por essas crises, salvo seja um ghostwriter ou um ser escrito por um fantasma, grande flagelo da humanidade, hoje.

Hoje há vários heróis e menos horizontes de salvação, Pregadores e Preces, embora ainda colem como carrapato em sangue de gente desavisada coisas como “esperança”, “amor” e afins. Vários autores, escritores, editores. Já recebi algumas respostas de submissões anos depois de feitas e sempre me pergunto que tipo de imbecil o editor acha que trata com. Sensação que as pessoas experimentam filas mundo afora, processos mundo afora, serviços mundo afora.

Infelizmente, é um traço do mundo para além do editorial: é um objeto de crônica permanente, que se torna ainda mais curioso em um mundo cujo grande impacto prescinde dessa figura do Editor, antigo guardião da verdade em que alguém ainda acredita, e que também, como todas as outras do texto, foi devidamente morta por uma cacotanásia em que tudo foi se embolando sem cuidado. Descansem em paz.

*Eliseu Raphael Venturi é radicado em Curitiba/PR.

Redação

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