Encenação de ator, por Eliseu Raphael Venturi 

O mérito do ator é ser difícil de acreditar em tudo o que ele apresenta com seu corpo porque se é verdade o que se vê, não parece ser atuação

Encenação de ator

por Eliseu Raphael Venturi 

Esta é uma obra de ficção. Por um instante, o espectador, o antigo espectador inerte de Enzensberger, sentiu-se revivendo velhos momentos de televisão, quando heroínas sonsas eram vanguarda de costumes, e quando todos precisavam que a ficção injetasse o que hoje se chama vulgarmente de “progressismo”, um jeito simpático de nominar anemias jurídicas e outras falhas de programação.

O que quero dizer é que o espectador – e hoje ninguém mais é espectador, mas comentador, diretor e editor de grade de grandes produções – se sentiu numa certa esperança, então, de ver uma atriz, e o que os atores fazem é nos enganar e quanto melhor seu engano, maior seu triunfo, e a maturidade do ator é um exaurimento de clássicos acumulados em seu repertório, sua mente, é muito erudita, aliás, como que inevitavelmente alterada por memorizar tantos textos de absurda qualidade e densidade que perigam a filosofia séria.

Eu, por exemplo, adoro a Huppert, porque ela não apenas sempre me engana como me convence, e economiza recursos de um modo absurdo, e é precisa, e é o futuro do feminismo, ou o que há de feminismo se houver algum feminismo, ou se é que importa o feminismo nas mulheres de Huppert, porque ela está para fora e para além do nome, da marca e da seita. Diferente do fracasso dos homens de Houellebecq, é interessante contrapor, se gênero importar senão para marcar o liame da agressão, perpetuando. Mas tudo isso é Huppert na tela e Houellebecq no romance.

Os atores no palco, os atores fora do palco, queremos acreditar que haja um lapso nesta linha tênue de geografia, os atores sempre têm o nosso crédito de que venham a nos enganar e, com isso, ganhar nossa eterna simpatia, admiração: aplausos.

Ah, a televisão, a telenovela, que caixinha perigosa que seria substituída pelas perigosíssimas tabletas municiadas das redes sociais, aliás, gatilhos de um dedo só.

Você acredita em tudo que vê? Não apenas acredita, como se deixa e se faz moldar, plasmar, encarnar, como um ator inocente que se perdeu em uma pilha randômica de papeis dados; um exercício de espiritualidade, é sagrado.

Hoje algumas telenovelas exploram um certo tipo de realismo ultramelodramático: vilões e mocinhos não usam cinto quando usam camisas dentro da calça, galãs ostentam uma gordurinha abdominal, sem jamais serem obesos, é certo, e, vá lá, a assimetria facial e os dentes perolados vários tons abaixo do branco-azulejo são critérios de seleção; amarram-se rostos consagrados aqui e ali e até se tolera preencher o resto do vazio da tela com atores desconhecidos, os quais, parece, são até um pouco oportunos em eras de cortes de gastos e, voltamos ao começo, limpeza de direitos.

São os nossos tempos, vale relembrar o chorume, estamos na telinha um tanto caricatos, realities nos ensinaram a aplaudir o real-tal-como-é cru e cruel, e o real-tal-como-é sobe e sobe em todos os tronos respeitáveis e consagrados, é dizer, hoje tudo está possuído pelo hiperreal, profanado, todos estão representados, democracia, assim, vai de vento em popa porque, afinal, democracia representativa, para além dos outros zilhões de fórmulas que deram nossas cabeças a juízes, é um pouco disso, um pouco de autorretrato errado mesmo, costurado por sei lá quantas maratonas que nos dão a explicação de toda a cosmogonia contemporânea, a um clique do controle remoto, a um segundo do linchamento.

A mesa está servida, ou, como gostam de dizer, as cartas estão dadas, e assim por diante. Esperamos que a atriz encene, desejamos, clamamos pela mais elevada peça e o “gran finale” do desmascaramento, quando de dentro do vilão sai a pessoa-de-carne-e-osso, mero mortal. Parece difícil acreditar; desrreferencializados.

O mérito do ator é ser difícil de acreditar em tudo o que ele apresenta com seu corpo porque se é verdade o que se vê, não parece ser atuação: seus sorrisos rasgados e suas falas, suas falas são texto de roteirista, talvez abrilhantadas por um domínio exímio de improvisador, impostor, sua violência é amor. A violência do ator nos humaniza. Uma boa realidade é o ápice da arte de qualidade. Tudo convence pela inverossimilhança, o real absurdo é uma ode surrealista ainda assim. Comentador, seu amor ou seu ódio são também apenas literatura, marcações no palco da expectativa.Todos são artistas, aliás.

Não nego o desejo do fim da peça, com o ator voltando ao nosso chão comum de barro e de terra e, descalço, segura-nos às mãos, voltamos à humanidade para tomar um café e aproveitar a nossa areia que corre ampulheta abaixo. Mas esta é uma obra de ficção, apenas.

Eliseu Raphael Venturi é radicado em Curitiba/PR.

Redação

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