Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
[email protected]

Estupro e imagens da violência, por Urariano Mota

Por Urariano Mota

Do Diário do Pernambuco

Na semana em que houve uma revolta universal contra um estupro coletivo, divulgado em imagens pelo twitter, eis que veio a público a declaração do Chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro:  “Só o exame de corpo de delito não vai ser característica se houve o estupro ou não. Ela pode ter tido relações sexuais consentidas e por ai não seria estupro. Ela estava deitada e desacordada, mas pode ser realmente que ela possa ter ingerido algum tipo de bebida alcoólica ou algum tipo de droga. Mas nada disso caracteriza. As investigações têm que ser um pouco mais técnicas para caracterizar realmente se houve o estupro e como foi feito esse fato”.

E mais disse, ou completou, como se fala no jargão:  “O chefe da Polícia Civil do Rio, delegado Fernando Veloso, disse que um laudo no vídeo que deu origem à investigação do estupro coletivo vai ‘contrariar o senso comum’. ‘Não há vestígios de sangue nenhum que se possa perceber pelas imagens que foram registradas’”. Ah, bom, então ninguém viu o que viu. Ou dito de outra maneira, todos viram, mas não podem avaliar com olhos desarmados o que viram. Precisam de intérprete. À primeira vista, digamos, esse desligamento de autoridades em relação ao mundo real chega a ser uma lei não escrita. Parece que ninguém avisou ao chefe de polícia que estamos no século vinte e um e os costumes não são mais como os de antes. Talvez estimulado pelos últimos atos de Temer, o chefe da polícia achou que também podia passar por cima de conquistas históricas da civilização. É possível.

O fato é que tamanha foi a revolta nacional contra a perícia profissional do delegado, que ele se viu obrigado a voltar atrás, e viu, sob os olhos da perda do cargo, que o estupro era mesmo um estupro. Sem dúvida era, onde já se viu? Mas por mais que dê na gente vontade de satirizar uma estupidez, esse ainda não é o ponto. Existem aspectos mais graves e dramáticos no cômico da autoridade que reinterpreta uma ocorrência trágica. A direita, ou para usar expressão eufemística, o pensamento conservador,  sempre se apropriou da imagem. Não bastassem o mando das armas e a barbárie, que à força impõem o mundo injusto, a direita quer também o domínio ideológico, pela velha visão. Desejam impor a legenda para a interpretação da imagem, assim como os noticiários da Rede Globo, do Jornal Nacional, que não satisfeitos da seleção dos fatos divulgados, recheiam com narrativa e legenda o que todos veem. Mas é geral. Não faz muito, quando da reedição das Memórias de Gregório Bezerra, fui à TV Jornal do Comercio, que possuía as imagens de Gregório sendo arrastado pelas ruas do Recife, ou sem camisa, somente de calção, preso. A resposta foi que os arquivos dos filmes sumiram. É um mal que vem de longe.

Na ditadura, nós não sabíamos das fotos pornográficas dos prisioneiros políticos no necrotério, dos corpos e faces arrombados à bala. Em compensação, tínhamos a legenda que interpretava o permitido. Então, pela lógica da época, os presos não passavam de terroristas. E feios, caricatura do terror, o rosto cheio de marcas, com as frases sob as fotos que os enquadravam como perigosos, inimigos da família brasileira.

Assim como no retrato de Soledad Barrett, na foto esmaecida, enevoada de propósito no laboratório fotográfico da repressão política. Quiseram ofuscar a beleza da guerrilheira para enquadrá-la na face de terrível subversiva. A legenda da foto apagada dizia: “Atuava no Nordeste como agente de ligação de grupos terroristas sul-americanos. Tinha ligação com terroristas brasileiros no Chile”.

Interpretar imagens é um vício da história da direita no Brasil. No próximo texto, contarei um caso exemplar de escravos em Pernambuco. 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

5 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. ótimo artigo…
    serão

    ótimo artigo…

    serão necessárias milhóes dee palavras como estAs para EXPLICAR

    AS MANIPULAÇÕE DAS OIMAGENS  NO BRASIL….

    AÍ MILHOES DE PALAVRAS VALERAO POR MIL IMAGENS…

  2. o estupro…

    Caro sr, o que houve foi condenação sem julgamento. Castigo sem defesa. Conclusões sem perícias. Prisão sem condenação. Como é pesado o braço do Estado brasileiro quando o suspeito é negro e pobre. Os mesmos que exigem um Estado menos policialesco, prisões mais flexíveis, inquéritos mais verdadeiros, são os primeiros a “exigir sangue nos olhos”. Não importava mais o morro invadido por traficantes, um pedaço do RJ onde o Estado não chega e as normas são ditadas pelo “dono da boca”. Não importava mais que no local, a policia só chega para receber o “arrego” ou junto com as cameras para aparecer no JN  Não importava mais os AR 15 ou AK 47 com os quais um lunático drogado fica brincando de tiro ao alvo com pessoas nas vizinhanças. Importava apenas as imagens e a bingança. Tivessem continuado o inquérito, averiguado responsabilidades, iniciado um processo legal e bondenados, se fosse o caso, não estaríamos num país sem estupros. Mas estaríamos num pais com leis. E respeito à elas. Aé porque todos deveriam ser inocentes até prova em contrário. 

  3. Uma menina estruprada por 33

    Uma menina estruprada por 33 soldados do tráfico estaria morta, não resisitiria à sangria, não poderia caminhar e o resultado da violência sexual duraria para o resto da vida. Portanto vamos devagar, vem aí uma nova Escola Base que encontrou seu Delegado (Delegada) doido para agradar ao clamor público.

  4. Um monte de asneiras.

    Artigo “velho”, já atrasado em relação ao ótimo debate que se travou por aqui.

    Tratar a covardia da polícia em sustentar seu correto cuidado com as apurações, tendo cedido a turba que baba por um linchamento, ao invés de apurações, como prova de que os “argumentos” se comprovam é desonestidade intelectual demais.

    Então se o delegado voltou atrás com a histeria feminazista, então tá, podemos trancar os suspeitos e jogar a chave fora, ou esperamos que o tráfico faça o trabalho sujo, para deleite da classe média?

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador