Crônica

Felicidade, por Izaías Almada

Felicidade (*)

por Izaías Almada

Amarilis ensimesmava contando as estrelinhas do seu vestido de chita. O vestidinho azul de gola de renda branca e todo rodado. A estampa misturava estrelinhas e meias-luas.

Fazia assim quando estava distraída ou à espera de alguém. Quase sempre na companhia do cão Balaio, um vira-lata faminto e preguiçoso que apareceu na fazenda do avô assim sem mais nem menos.

Estava ali sozinha na sala do apartamento à espera do pai que conversava a portas fechadas no escritório com o moço a que chamavam de advogado. Balaio desta vez ficou na fazenda.

Amarilis não sabia muito bem o que era advogado, mas sabia que o pai andava nervoso por causa de umas discussões com a mãe. Muito observadora que era, percebeu que o advogado ajudava a resolver problemas nas discussões entre gente grande: o pai e a mãe tinham sempre muitos problemas.

Iria fazer seis anos de idade dali a duas semanas. Por que será que o papai não brincava mais com ela na volta da escola? E a mamãe, por que tinha ido embora com aquele outro tio?

O pai saiu do escritório com o advogado. Parecia mais contente. Abraçou Amarilis e deu-lhe um grande beijo no rosto. Ela apertou o pai no abraço dele e, por cima do ombro, viu o advogado diminuir de tamanho à medida que caminhava para a saída do apartamento.

O pai perguntou se ela queria um sorvete. O dia estava quente. Escolheu o de flocos com chocolate e saíram para dar uma caminhada pela pracinha. Tinha visto o pai chorar naqueles dias.

Sentaram-se e ele começou a falar, mas Amarilis não entendia muito bem as palavras que ele dizia, a não ser uma frase que foi repetida duas ou três vezes: a mamãe não volta mais para a casa. De novo começou a contar as estrelinhas do vestido azul.

O pai tornou abraçá-la e ficaram assim por instantes no banco da praça.

‘Ela não volta mais?”.

“Não, foi para o Rio de Janeiro”.

“Nunca mais?”

“Acho que não…”

“Foi o advogado que falou?”

“Ela deixou uma carta com ele”.

“E o Balaio?”.

“Fica com a gente”.

“Eu não preciso mais ter medo dela?”

“Medo?!”

“Ela me punha de castigo… Me fechava no quarto e batia no Balaio…”

O pai ficou alguns segundos em silêncio antes de responder:

“Não, ela não volta mais…”

“E o papai?”

“O que é que tem?”

“Vai para o Rio de Janeiro também?”

“Não. O papai vai ficar na fazenda tomando conta de você…”

“Posso brincar na varanda?”

“Onde você quiser”.

“O Balaio também?”

“Também…”

“Tomara que ela não volte… Nunca mais…”

“É… Ela agora foi ser feliz!”.

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(*) – Conto do meu livro “Memórias Emotivas”/ Ed; Mania de Livro.

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro. Nascido em BH, em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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