Fernando, por Marília Moreira

Fernando

por Marília Moreira

Eu tinha treze anos quando o conheci. Talvez menos. Foi meu pai que o apresentou para mim.

Logo me encantei pela sua inteligência, pela sua sensibilidade, pelas suas palavras profundas, tão sábias, tão macias, tão bem colocadas que me faziam concordar com tudo o que ele dizia, mesmo se, muitas vezes, eu não compreendesse muito bem parte daquilo que ele dizia.

Não importava. Eu o compreendia o suficiente para perceber que o mais importante eram as sensações que as suas palavras me geravam, e desfrutava delas como quem deita sobre a grama num dia de verão ou sorve a água fresca de uma fonte natural após longa caminhada embaixo de sol. Ou talvez fosse mais acertado dizer que eu recebia as suas palavras como quem recebe um buquê de flores colhidas no campo, ou uma caixa de deliciosos bombons sortidos.

Como toda menina apaixonada, eu absorvia dele apenas o que me era conveniente.

Ele era o meu pastor, o meu guardador de rebanhos, mesmo que ele me tivesse dito, já no primeiro contato (isso ficou provado mais tarde – estava registrado por escrito!) que ele nunca havia guardado rebanho algum. O que importa? Para mim era agradável imaginá-lo passeando (de mãos dadas comigo, claro), pelas paisagens bucólicas que ele me apresentava e onde, invariavelmente, encontrávamos com Deus. Deus estava em toda a parte, entre as árvores, entre os montes, entre o sol e o luar. Venerávamos ambos (ao menos assim eu acreditava) aquele mesmo Deus que se nos apresentava através da natureza e que dormia dentro de nossas almas, e às vezes nos acordava à noite para brincar com nossos sonhos e virava uns de pernas para o ar, punha uns em cima dos outros e batia palma, sozinho, sorrindo para o nosso sonho.

Eu estava impregnada de suas palavras, sabia-as de cor, de coração, e pouco me importava se o significado do que ele dizia não era exatamente aquele que me chegava à alma, ou à razão que, influenciada por ele, eu passara a desprezar. Não era apenas o que ele falava, me encantava também o como, a naturalidade com que as palavras pareciam escorrer de sua alma como de uma fonte na qual eu me banhava.

Talvez por isso, por esse estado de embriaguez causado pela paixão, eu tenha levado um bom tempo para compreender que ele não acreditava em Deus algum, que sua insistência em dizer o Seu nome, em defini-lo, em questioná-lo, não era senão uma forma de negá-lo, de afirmar a sua não existência.

Pouco me importava a sua crença ou ausência de crença em Deus. Concordávamos a respeito da estupidez da igreja católica e isso bastava, mas o fato de eu passar a notar que havia por trás de suas palavras todo um raciocínio e que, para piorar, muitas vezes eu não acompanhava esse raciocínio, começou a me incomodar.

Fiz que não percebi.

Mas quando eu me dei conta de que aquela tal natureza, aquele cenário campestre por onde eu sonhava passear de braços dados com o meu amado, não existia, que aquilo tudo era, se não uma mentira, uma invenção dele e, ainda que existisse, ainda que por uma obra de magia ele o tornasse real, não haveria espaço para mim nesse cenário, não haveria espaço para pessoa alguma. Aí, sim, eu me senti traída.

Dei o troco.

Eu, até aquele momento tão entregue, comecei a romper o pacto de não pensar e me pus a indagar: por que tanto alusão a Deus se Ele não o interessava? Por que tanta reflexão sobre a metafísica se há metafísica bastante em não pensar em nada? Aliás, por que tanto pensamento se a sua proposta havia sido: não pense em nada, sinta!?

Questionei-o. Submeti-o a um interrogatório escrupuloso como uma amante enganada que procura arrancar do amado a confissão do adultério.

Foi então que eu descobri que ele não era ele. Ou melhor, esse “ele” por quem eu estava apaixonada era apenas uma faceta de um “eu” maior. Era, na verdade, quase que o avesso desse “eu” verdadeiro. Era, talvez, a sua própria negação. O lado de lá das suas convicções.

Então eu não o amava, pensei. Amava apenas a invenção que ele havia feito de si mesmo. Amava apenas um aspecto de um “eu” muito mais amplo, muito mais complexo, e mesmo essa parcela que eu julgava amar, eu amava por aquilo que ela não era.

Fiquei confusa.

Mas não pude deixar de amá-lo.

Inebriada pela sua voz, eu me deixei conduzir através dos seus múltiplos universos, e ele, que até então me falara muito de sensações, mas não de sentimentos, começou a me revelar os seus anseios, as suas dores, a sua subjetividade.

Parecia que ele havia temido o meu possível afastamento (eu não me afastaria, mas ameacei) e com isso resolvido se mostrar mais próximo de mim. Passou a me falar de seus sentimentos íntimos que, ainda que impregnados de pessimismo, eu julgava de uma beleza tão sublime, que ensaiava vivê-los eu também. E repetia, como a Eco de Narciso, as suas palavras, fazendo de conta que elas eram minhas.  E sentia deveras uma súbita angústia que, na verdade, eu não tinha, uma desconsolação da epiderme da alma, um deixar cair os braços ao sol por do esforço (que bonito!) e eu renegava tudo, renegava mais do que tudo, renegava a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles! E pedia de beber, mesmo se não tinha sede.

Quão conveniente se tornaram as suas palavras à minha psique adolescente que se sentia fragmentada como os cacos de um vaso vazio deixado cair pela escada excessivamente abaixo, pelas mãos de uma criada descuidada, fazendo-se em mais pedaços do que havia louça no vaso.

A essa altura eu tinha já os meus quatorze anos, estava ainda disposta a sentir tudo de todas as maneiras, viver tudo de todos os lados, mas tinha uma terrível tendência à introspecção. Nesses momentos eu recorria a ele, a esse novo “ele” recém descoberto. Ele era o meu porto seguro, o meu refúgio, ele me compreendia como ninguém. Ao se abrir para mim, ele me espelhava e fazia com que eu me sentisse mais humana. A convivência com ele diminuía o meu anseio por perfeição, por atingir uma posição de “semideidade”. Eu já não estava só, não era a única a me sentir errônea nesta terra, eventualmente ridícula, eventualmente covarde ou até mesmo vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Às vezes ele também me falava de um certo futuro que a mim mais parecia o passado, quando muito o presente. Falava de máquinas e de navios e de cidades. Essas coisas não encontravam ressonância em mim, mas a essa altura eu já estava bem ciente de que esse homem a quem eu amava, eu o amava por alguns aspectos seus (mesmo contraditórios), mas não exatamente pela sua totalidade. Melhor dizendo, eu o amava como um todo, mas não eram todas as suas facetas que me encantavam.

Certa vez ele quis me falar de uma certa Lídia, não permiti, achei um desaforo, o ignorei solenemente.

Um dia encontrei uma certa Mensagem deixada por ele, palavras que prometiam ser de um “ele – ele mesmo”. Acreditei que aquele homem, de quem eu me sentia tão íntima, mas que ainda não conhecia por completo, houvesse enfim se disposto a desnudar-se por inteiro diante de meus olhos e me senti honrada em poder apreciá-lo naquilo que eu então acreditava ser a sua dimensão mais verdadeira. Me dispus a devorá-lo. Mas, de repente, ele se tornou completamente inacessível para mim. Eu simplesmente não conseguia compreendê-lo. Absorvi, no entanto, duas passagens de sua Mensagem. Graças a uma delas, até hoje, quando vejo o mar penso que parte do seu sal são lágrimas de Portugal e, mais importante, passei a acreditar que tudo vale a pena se a alma não é pequena!

Gravei essa última frase na minha memória como havia gravado em meu íntimo (e na porta do pequeno armário do meu banheiro) essas outras palavras suas:

PARA SER GRANDE, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha porque alta vive.

Foi apenas três décadas depois do meu primeiro encontro com esse homem-poeta que eu me aproximei de uma outra faceta sua, a única à primeira vista apartada da poesia, mas que traz, em sua prosa, fragmentada como o autor que a escreveu, uma inegável carga de lirismo.

Me parece haver nessa parcela (a mais próxima de um homem comum), mais do verdadeiro “ele” do que em todas as outras. Um “ele” despido da sua genialidade, é verdade, um “ele” simplificado que caminha pela Rua dos Douradores a colher fragmentos de cotidiano; que nos seus piores dias é capaz de identificar-se com um trapo sujo esquecido no parapeito de uma janela qualquer e, em outros, melhores, faz paisagem com o que sente, faz férias das sensações; em outros, ainda, sempre melancólico, busca um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar.

Em plena maturidade volto a me apaixonar pelo mesmo homem por quem me enamorei na adolescência. E quando digo o homem, me refiro mesmo a ele, o homem, não apartado de sua obra, mas que, para além dela, me revela agora outros aspectos, outros interesses seus que coincidem com interesses meus. Como se isso já não bastasse, ele teve a generosidade de me apresentar um de seus grandes amigos e despertar em mim uma nova paixão: Mário de Sá-Carneiro.

Mas essa já é uma outra história.

Marília Moreira é atriz, autora das peças teatrais Além da imagem – um réquiem para Marilyn Monroe; Andanças de uma lagartixa, e Língua de Boi, e do livro de poemas infantis Lia e o feitiço da palavra, pelo qual recebeu o prêmio FNLIJ de escritora revelação.

*Todas as passagens em itálico são trechos de poemas de Fernando Pessoa.

Redação

Redação

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  • Você nao apreciou Mensagem? Mas o melhor trecho de poesia em língua portuguesa está lá... Releia D. Sebastiao (há mais de um com títulos semelhantes, acho; é o que começa com "Louco, louco sim porque quis grandeza"). E o Epitáfio a Bartolomeu Dias tb é muito bom.

    • Olá, apreciei, sim, mas só agora aos 44 anos e depois de ter lido Os Lusíadas, aos 14 não entendi nada!
      De qualquer forma vou reler essas passagens. Obrigada!

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