Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
[email protected]

Filó, Coração Valente, por Rui Daher

Filó

Filó, a decana dos cachorros da casa, põe reparo:

– Papi (desculpem, ela é carinhosa), o que está acontecendo? Anda muito triste. Já passamos fases piores.

– Nada não, querida. Saudade de beira-mar. Nos últimos 18 anos, tive apenas 10 dias seguidos de férias.

– Mas você vive viajando, volta com boas histórias, humor, não perde piadas, espalha amizades por onde anda, descobre cachaças, come bode, escreve em sites importantes.

– Sempre a trabalho ou ligado à situação do País. Queria horizontes mais amplos, limpos, óbvios, mesmo que a distância não fosse maior do que a dos olhos até a página do livro em minhas mãos.

– Há cinco dias você está entrevado, não consegue nem se mexer, insiste em trabalhar, não vai ao médico. Mami (avisei ser carinhosa) disse que há bom tempo você não ficava assim.

– Desde 2003, acho.

– É a pouca grana?

– Não, mesmo quando achava que tinha, não tinha. Gastava bem, inclusive com seus antecessores, Bingo, Cauim, Magrela, Chica, nossas proles.

– Até uma gata canadense você aguentou aqui em casa.

– Esse um assunto que me faz mais triste.

Quando a minha filha, Júlia, depois de morar alguns anos no Canadá e na Costa Rica, voltou ao Brasil, trouxe com ela uma gata todinha branca, a Nina, falecida recentemente.

– E nós, hein Papi, pensando que iríamos detestá-la?

– Pois é, acabamos grandes amigos. Ainda ontem à noite, aqui fora escrevendo, lembrei-me dela subindo pelas árvores até o caramanchão. Ficava lá de cima nos olhando com desfaçatez, como a dizer “yes, I can”. Lixava-se para nossos apelos para descer e entrar. Somente quando apagávamos as luzes externas vinha com o andar maneiro e malandro, ar superior, e se instalava no sofá para dormir.

– Folgada ela. Será que era vira-lata, como eu?

– Sei não. De boa estirpe era, afinal deram-lhe visto de entrada nos Estados Unidos. Morreu sem termos sabido sua exata idade.

– Pensemos em 40 anos. Conforma.

– Boa, Filó. Você está mesmo afim de me reanimar.

– Papi, quem sabe um churrasco no domingo? A Duda nunca participou de um.

Duda é uma cachorrinha que foi deixada na porta de casa na véspera do último Natal. A recolhemos, espalhamos pelo bairro sua existência, mas ninguém a procurou. Ficou. É estabanada, na contramão da compenetrada Filomena.

– Tô travado, difícil acionar a grelha. Alguns amigos se afastaram, você sabe, cada um, cada um. Também, carnes de boa qualidade estão caras.

– Não podemos ir de acém?

– Para você dá, eu com o estado atual dos dentes, não. Dentistas, assim como picanhas, estão pela hora da morte.

– É caro morrer?

– Em alguns lugares sim, noutros a vida vale pouco.

– E o livro do dominó no botequim?

– Pode ser que saia. Pedem que eu espere o fim da crise. Desconfio que nunca mais.

– Ando te achando tão velhinho … 70 não era para estar assim tão derrubado. Acho que precisa de alguma atividade física. Por que não dá uma caminhada pelo bairro?

– Pode ser uma boa, mas e a coluna?

– Da CartaCapital ou do GGN?

– Das costas.

– Dizem que até ajuda. Vai, põe o tênis!

– Isto nunca!

Volto acabado. Mais desanimado ainda.

– O que aconteceu? Bolhas no pé? A dor piorou?

– Só na alma.

– Por quê?

– Na volta da caminhada, parei numa banca para ver as capas das revistas e primeiras páginas dos grandes jornais. Não esperava coisa boa, mas só vi maluquice, hidrofobia, que mal lhe toque.

– Deveria ter evitado.

– Caretas horríveis, deformadas, destila-se ódio por todos os cantos. Certo jornalão optou por rebuscado editorial de capa. Seu dono, homem de nariz pontiagudo e espírito empinado, pensou reeditar Émile Zola (1840-1902), em J’accuse. Não passou de “Filme Triste”, sem o Trio Esperança. Escreveu o obituário da honestidade.

– Começo a entender.

– Se não tiver muita grana envolvida nisso tudo, só pode ser burrice. Tire por você, Filó. Vitalidade extraordinária para tomar conta da casa, desde jovem defendendo a história da família, não arreda patas de suas posições, foi justa ao aceitar a gata Nina e a espevitada Duda. Por isso te elegemos para morar aqui.

– Obrigada, Papi.

– Sério. Muitas vezes você não se expressa bem no latir. Claudica um pouco, erra de alvo, agride amigos e poupa inimigos, centraliza atividades, mas tem coragem desde quando encontrada em Cotia com meio rabo amputado.

– Era criança. Tenho lembranças de ter passado por infernos torturantes.

– Veio e fez desta casa um lugar feliz e igualitário, como sempre sonhamos.

– Puxa, Papi. Assim vou acabar latindo “Quantas Lágrimas”.

– Verdade querida, houvesse outra eleição na casa de adoções de vira-latas, nossa família votaria novamente em você. E se algum vagabundo quisesse impedi-la seria escorraçado ou morto.

– Agradeço, Papi, mas e aquele churrasco sai? Para mim e a iniciante Duda algumas pelancas servem.

– Claro, Filó, Rainha de Coração Valente!

 

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador