História de um humilde amor por Belo Horizonte

Por zegomes    

Interessa a alguém ouvir a história do meu humilde amor por Belo Horizonte? Então vou contar. Belo Horizonte foi a minha cidade maravilhosa. A minha Alexandria. Onde, pela primeira vez, eu tive um salário mensal, regular e em valor acima do salário mínimo. Aonde cheguei, virgem, aos 23 anos de idade, vindo de Goiânia, para fazer a minha especialização na UFMG, e onde tive minhas primeiras experiências sexuais. Onde comecei a ver, com outro olhar, auroras, noites e pessoas da noite e participei de orgias singelas. Orgias comedidas, comportadas, se comparadas ao já agitado espírito da época. Anotei, então, em meu caderno:

O que se arrasta na noite até a madrugada

 e cujo olhar vagueia

 busca um porto algo seguro noite adentro

 um olhar em desespero e solitário

 espreitando, por vezes, revoadas

 de cores alegres da aurora.

     Cheguei a Belo Horizonte na manhã de domingo de 09 de janeiro de 1983. Após me acomodar nos aposentos da Residência Médica na Alameda Álvaro Celso em Santa Ifigênia, saí para caminhar pelas redondezas. Desnorteado e triste, sentei-me numa escadaria da Avenida Afonso Pena e comecei a chorar, a chorar muito, silenciosamente, sem saber bem porquê! Estava sozinho em uma nova e estranha cidade. Um guarda veio me expulsar do local. A escadaria pertencia a um tribunal, as pessoas não podiam permanecer ali. Atravessei a Afonso Pena, secando as lágrimas, e entrei no Parque Municipal. Eu nem desconfiava que, em vez de um poente ou um outono lacrimoso, estava iniciando para mim a alvorada ou a minha primavera. Algum tempo depois, lembrando-me desse dia, anotei em meu caderno:

     Mais cedo ou mais tarde chegamos a uma idade, onde começamos talvez a nos despedir da vida e então aquele desgarramento infantil nos deixa e as mudanças já não nos são de todo agradáveis, porque qualquer passagem de uma fase da vida para outra, como a mudança de domicílio para cidade diferente ou o término de um curso escolar, nos soa como se estivéssemos caminhando para o ocaso e nos esquecemos das inúmeras venturas que nos poderão ainda vir, em nome das cinzas que acabamos de deixar.

     Na Faculdade de Medicina da UFMG, na Av. Alfredo Balena, havia uma livraria/papelaria chamada Cooperativa e Editora de Cultura Médica. Nos intervalos do meu trabalho me aninhava lá. Um dia puxei de uma estante um pequeno livro de Poemas de Konstantinos Kaváfis, tradução de José Paulo Paes, Ed. Nova Fronteira. Abri. E um frio de emoção me percorreu a espinha quando li o primeiro poema:

 Desejos

Belos corpos de mortos que nunca envelheceram,

Com lágrimas sepultos em mausoléus brilhantes,

Jasmim nos pés, cabeça circundada de rosas –

Assim são os desejos que um dia feneceram

Sem chegar a cumprir-se, sem conhecerem antes

O prazer de uma noite ou a manhã luminosa.

     Comprei de imediato o livro, emocionado. Recentemente anotei em meu caderno uns escritos sobre os vivos e os mortos. Achei inicialmente que teria a ver com o conto de James Joyce que se chama “Os Mortos”. Mas não tem muito a ver, pensando bem. Mais a ver tem com Kaváfis –sempre ele, Kaváfis- e seu poema “Desejos” e os jasmins nos pés e as cabeças coroadas de rosas. Fiquei um pouco envergonhado ao repetir essa imagem da poética kavafiana de maneira involuntária, porém tão escancarada. Resisti. Mantive. Tudo bem, é uma inspiração, pode-se dizer, mas não chega a uma imitação, certo? Visto que, sinceramente, é possível falar de mortos e funerais sem falar de flores?:

Os vivos e os mortos

Quando pequenos temos medo dos mortos. Isso porque os mortos, quando somos pequenos, são os estranhos, são os outros, os distantes. À medida que envelhecemos vamos perdendo o medo dos mortos. Os mortos então vão sendo, pouco a pouco, os nossos seres mais amados, nossa avó, nosso avô, nossa mãe, um irmão, um amigo querido. Amarrados em pacotes de cetim, com rosas, nossos mortos carregam consigo os momentos mais suaves, nossas confidências mútuas, nossas ternuras, nossos mortos carregam as doçuras, e os vivos, lentamente, se tornam os estranhos.

     Tão logo as aulas normais da Universidade se iniciaram, matriculei-me no curso de latim na Fafich, lá na Rua Carangola, à noite. Comprei o livro do Prof. Oscarino da Silva Ivo –Estudo Progressivo da Morfo-Sintaxe Latina- e nossa primeira aula teve como conteúdo a declinação do substantivo Nauta (marinheiro, marujo). Tudo ia bem, eu estava realizando um sonho, estudando latim nas horas vagas, até que…

        Numa tediosa tarde de sábado, eu estava de folga, livre de plantão, saí caminhando nas ruas da cidade. Aquelas ruas com nomes de índios e de estados brasileiros. Subindo pela Rua Aimorés, quase chegando no seu cruzamento com a Av. Amazonas, deparei-me com uma sauna chamada “Hot Haus”. Vi jovens rapazes entrando e entrei também. Parecia um paraíso. Muitos jovens recrutas de um quartel próximo frequentavam o local durante a semana toda, oferecendo seus serviços masculinos.

       Resumindo, creio que a sensação que tive ali se equivaleria à de Nélson Rodrigues adentrando um estabelecimento de tolerância, repleto de jovens normalistas.

          A primeira vítima dessa descoberta foram as aulas de latim. Não havia mais como suportar as aulas noturnas com a noite em todo o seu fausto acontecendo a algumas quadras. Senti muito fortemente na carne mais um poema de Kaváfis:

       Jura

A cada pouco jura começar vida nova.

Mas quando a noite vem com seus conselhos,

Seus compromissos, com suas promessas;

Mas quando a noite vem com sua força

(o corpo quer e pede), ele de novo sai,

Perdido, atrás da mesma alegria fatal.

            Como desculpa para minha falta de modos eu recitava outro poeminha de Kafávis, decorado do mesmo livro que comprara, na magnífica tradução de José Paulo Paes:

     Fui

Não me deixei prender. Libertei-me de todo e fui

Em busca de volúpias que em parte eram reais,

Em parte haviam sido forjadas por meu cérebro;

Fui em busca da noite iluminada.

E bebi então vinhos fortes,como

Bebem os destemidos no prazer.

     Poucos anos depois disso, fui trabalhar no interior de Rondônia, numa cidade chamada Rolim de Moura. Saí um dia para um evento local, na discoteca da cidade. Estávamos na terrível crise econômica do fim do Plano Cruzado. A cidade vivia do café e o café não vendia mais. Mesmo com a enorme crise a turma jovem se agitava, se jogava na festa. Lembrei-me do “Fui” de Kaváfis. Escrevi então em meu caderno:

     Dias de 1987

                        À maneira de Kaváfis

Rasgos de guitarra na noite

Entra e sai de gente jovem

Luzes e neons pisca-piscas

Jaquetas de couro, a moda, os jeans

Olhares…

Toda uma geração

Tenta agarrar intensamente

Sua juventude fugidia.

 

Por fim, outro poema de Kaváfis estremeceu-me. Seu primeiro verso deve ser uma das coisas mais lindas e perfeitas da literatura de todos os tempos, penso. É este:                      

Prece

Um marujo o abismo do mar guardou consigo.

Sem de nada saber, a mãe coloca um círio

 

Aceso diante da Virgem, um longo círio

Para que volte logo, a salvo dos perigos.

 

No bramido dos ventos põe o seu ouvido;

Mas enquanto ela reza e faz o seu pedido,

 

Sabe o ícone a escutá-la, grave, com pesar,

Que o filho que ela espera nunca há de voltar

     Para mim esse poema sintetizou várias emoções daquele momento em Belo Horizonte: o estudo do latim, o nauta, o deleite com vários jovens soldadinhos que não eram marujos mas era como se fossem, pois, pelo menos em tese, poderiam ir também para alguma guerra e sucumbir. A emoção de encontrar nos escritos de Kaváfis tamanha exuberância do sentimento de transitoriedade, de premência e inevitabilidade da velhice e da morte. Para um jovem de 23 anos isso era novidade.

          O marujo de Kaváfis foi e não voltou e foi pranteado. Imaginei um nauta que foi, voltou, mas não encontrou mais os de casa, e pranteou. A guerra e a morte podem trazer os dois cenários. Não adianta Epicuro afirmar que a morte não deve nos assustar porque não sofreremos com ela. Os que vão talvez não. Os que ficam sofrem sim. Anotei, então, em meu caderno, um esboço do segundo marujo, que até hoje é apenas um esboço:

      O nauta

Não como Ulisses, que chegando de sua guerra distante encontra sua ilha e sua gente quase como dantes, apenas tendo de fazer um esforço de herói para vencer os pretendentes, após o que sua vida toma o mesmo fio de outrora, a espécie de nauta que fico imaginando é a figura de um jovem que foi chamado a alguma guerra, atuando no mar, e após tempos de atividades constantes, misérias, regressa à casa e encontra tudo desolado, talvez porque a guerra aí fora severa e sua gente destruída, sem que ele soubesse, enquanto estava no mar, ou talvez porque todos se tenham esquecido dele, como se todos fossem uma Penélope leviana, e sentindo que não há mais lugar para ele, aí onde outrora fora tão feliz, se torna subitamente melancólico, de uma melancolia tão profunda que até parece a morte. Em sua catatonia, restam-lhe apenas as lembranças, que remói, que consolam, mas, ao mesmo tempo, reavivam a tensão melancólica, não se sabendo até quando permanecerá assim. Dessa espécie de nauta alguém escreveria um poema, que poderia ser este:

Ao voltar o nauta a sua terra

Já não encontrou nada do passado

Sobre as colinas onde outrora crianças brincavam,

                                                               Os jardins

Nenhuma pedra sobre pedra

O nauta só viu desolação

Enquanto ervas daninhas renasciam

 

Se algum júbilo há em aspirar desses campos um odor paterno

Outras fontes de sua íntima emoção agora são quimeras

E as noites de amor, relembra o nauta

E as noites de guerra.           

     Otto Maria Carpeaux disse que Kafávis “é o mais estranho poeta de nosso tempo” e “sempre só será poeta para poucos”. Como assim? Ele não explica bem. Afirma também que Kaváfis “foi homem extremamente isolado”. Um dos motivos desse isolamento seria porque, assegura, “a perversão sexual, a pederastia, o isolou dos outros”. Será se o mestre pensava que Kaváfis é um poeta para poucos devido à temática gay? Se for, discordo. A essência de Kaváfis é o tempus fugit, a juventude que foge, a vida fugidia, e não a louvação da homossexualidade. E quem pode negar que o tempus fugit é um dos pilares eternos da poesia universal?

            “A NOSSA CARA E BRANCA…”

A nossa cara e branca juventude

Ah branca, branca de neve,

Tão infinita e tão breve,

Abre por sobre nós asas de arcanjo!

Para sempre exausta, para sempre amante,

Esvai-se e some em alvos horizontes.

Desaparece em alvos horizontes,

E para sempre vai.

 

Ah para sempre não. Pois voltará,

Virá de novo, uma outra vez virá!

Com os alvos membros e sua branca graça,

Nossa alva juventude voltará.

Tomar-nos-á nas suas alvas mãos

E co’um lençol talhado em sua alvura,

Nívea mortalha feita dessa alvura,

Cobrir-nos-á.   

                        Konstantinos Kaváfis, tradução do português Jorge de Sena.

     Quase fico morando em Belo Horizonte para sempre. Tive sólidas propostas de trabalho. Mas eu era jovem, inexperiente e desejava conhecer alguma coisa do mundo. Fui. Resido atualmente a 20 km da fronteira de Minas. No caso de o Brasil se desintegrar, com uma guerra civil, por exemplo, e for dividido em vários países, como uma Iugoslávia, eu pulo para dentro de Minas e de lá não saio nunca mais. Às vezes sinto falta do calor dos jovens rapazes mineiros. Dos jovens e belos rapazes que serviram no 12º BI, no Barro Preto, nos anos de 1983, 1984 e 1985. Que agora devem ser senhores barrigudos e carecas. Não importa. A volúpia, a tensão erótica, a juventude, essas coisas kavafianas marcam os anos dourados de todos nós. E aqueles foram nossos anos dourados. Fugazes como todos os anos dourados.

Redação

3 Comentários

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  1. Ah, essa literatura companheira, parceira e cúmplice até.

    Fernando Pessoa precisou repartir-se, fragmentar-se para dar conta da vida, das vidas que vivia.

    Como dizem meus meninos e meninas do Clubinho da Leitura, aqui nas Gerais, ” os livros têm aventuras pra gente viver, sem a gente ter que viver, sem precisar correr aqueles riscos que os autores escrevem”.

    É, pode ser .

  2. “Mais cedo ou mais tarde

    “Mais cedo ou mais tarde chegamos a uma idade, onde começamos talvez a nos despedir da vida e então aquele desgarramento infantil nos deixa e as mudanças já não nos são de todo agradáveis, porque qualquer passagem de uma fase da vida para outra, como a mudança de domicílio para cidade diferente ou o término de um curso escolar, nos soa como se estivéssemos caminhando para o ocaso e nos esquecemos das inúmeras venturas que nos poderão ainda vir, em nome das cinzas que acabamos de deixar.”

     

    Bravo! Bravo! Evoé, Proust!

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