Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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História para não se contar II, por Rui “Esforçado” Daher

História para não se contar II

por Rui “Esforçado” Daher

Esforço-me para lembrar o que aconteceu naquela madrugada de 26 de setembro. Ontem, parecia tudo tão claro. Mas, como já explicado, acabei perdendo o texto. Sei que o infernal barulho que faziam os cruzeirenses não me deixava dormir. A conversa que mantive com Darcy, Ariano e Melodia sobre os caminhos futuros do “Dominó de Botequim, o Retorno” confundia-se com a dúvida em parar de escrever e apenas dedicar-me à administração, que odeio, mas necessária à sobrevivência, havia 20 anos fartamente conquistada, e hoje surrupiada entre ingenuidade, dever ético e promessas não cumpridas. 

Desci a um dos jardins internos com uma latinha de cerveja e um charuto nicaraguense. Ambos baratos. Sonho ou realidade, não importa, uma hora da madrugada e o já lindo ambiente se transformou, tornou-se maravilhoso, soberbo, feérico, centenas de homens e mulheres elegantemente vestidos, maquiagens discretas, ou não, mas traziam beleza e alegria. Nem havia bebido demais no jantar. Um chileno, percentualmente maioria na divisão com a minha sócia na empresa. No jardim, ainda embasbacado, ouço um forte psiu. Olho para trás e vejo Walther, encostado numa pilastra, em mãos um copo com alguma bebida e na outra uma piteira ligada a uma luzinha vermelha.

– Comigo, Doutor?

– Sim. Gosta de algum jogo? Quer ir às roletas, ao carteado? Ou prefere conversarmos num salão a mim reservado?

– Acho que a conversa, doutor Walther. Não tenho paciência para jogos e pescarias.

– Gostaria de saber mais sobre o Brasil de hoje ouvindo de quem ainda está lá.

– Por pouco tempo, doutor.

– Pare com esse “doutor”. Banqueiros, empresários, fazendeiros, coronéis, não são doutores porra nenhuma. Nosso servilismo é que os permite assim nos chamarem. Além do mais, não acredito muito no que me contam o Darcy, o Ariano e o Melodia. E você é alegre, brinca muito, gente assim vai mais longe. Me siga.

Caminhamos por longos corredores. O burburinho dos salões abafa o som do pianista que tocava no lobby. No salão privado, mais chamava a atenção a biblioteca. Centenas de livros bem encadernados. Escolho um. É de Ignácio Rangel. Folheio à esmo e encontro vários trechos sublinhados e anotações laterais.

– Rui, em nossa conversa, apenas não me pergunte sobre meus filhos. Eles lá e eu aqui. Mas nos amamos. O que prefere beber? Eu irei de champanhe Veuve Cliquot. Me acompanha? Ou prefere um Old Parr?

– Por favor, o uísque apenas com gelo.

Chama um dos garçons e faz a encomenda.

– Ah, Deolindo, pede na cozinha fatiarem um pouco do haddock.

– Então, Rui, como percebe o Brasil hoje? De antemão, não existe desenvolvimento no capitalismo se não houver produção, comércio, serviços, povo empregado, ganhando dinheiro e consumindo.

– É justamente o que defendemos. Sabemos impossível e, talvez, equivocado pensar diminuir a desigualdade com os movimentos e revoluções socialistas, em moldes dos séculos passados.

– Demoraram, como sempre.

– Não sei se tomou conhecimento. Um jovem economista irlandês, Marc Morgan Milá, da equipe de Thomas Piketty, disse em entrevista à Folha que a desigualdade de renda no Brasil é uma escolha política. Quem duvida? Estranha um sistema que tributa mais os pobres. As alíquotas de impostos sobre herança de 2% a 4%, quando em outros países chega a 30%. A tributação de fortunas em torno de 5%. Enquanto isso, os mais pobres pagam ao menos 30% de sua renda via impostos indiretos sobre luz e alimentação.

– Sempre disse que construímos um Estado forte para governos fracos. Aceita mais uma dose?

– Sim, obrigado. Pesquisas feitas fora do País, indicam que o grupo do 1% mais rico tem cerca de 1,4 milhão de pessoas, com renda anual a partir de R$ 287 mil. O 0,1% mais rico reúne 140 mil pessoas com renda mínima de R$ 1,4 milhão. Enquanto isso, a renda média anual de toda a população é de R$ 35 mil. É uma discrepância muito grande. A concentração do capital é muito alta, aponto de tornar quase ineficazes os benefícios concedidos aos mais pobres, como reajustes de salário mínimo acima da inflação e programas de redistribuição de renda.

– Na verdade, Rui, assim, a própria população mais vulnerável financia boa parte das políticas sociais com seus impostos que, inclusive, incidem sobre o consumo, e este é o que mais pesa no orçamento dos mais pobres. No fundo, uma auto-enganação patronal que, depois, pede maior produtividade do trabalho.

– Walther, não gosto de misturar bebidas, mas não estou resistindo a uma taça do champanhe.

– Deolindo, traga uma taça e estoure mais uma garrafa.

– Você deve saber. Nos últimos 20 anos, o conjunto da sociedade transferiu para pagamento dos juros da dívida pública R$ 4,4 trilhões em valores correntes, segundo o Tesouro Nacional, o que acaba desaguando no sistema financeiro e no topo da pirâmide e dos grandes conglomerados empresariais, o que acentuou sobremaneira a concentração de renda. E não se pense aí, nos 10% mais ricos, classificação ridícula, pois abrange ganhos acima de R$ 3.000 por mês. A apropriação é feita pelos 0,1% ou 0,2%, de que fala Marc Morgan, confirmado por relatório da ONG britânica, OXFAM, que diz seis sortudos terem, juntos, fortuna acumulada de 88,8 bilhões de dólares, equivalente aos ganhos dos 100 milhões de brasileiros mais pobres. O que você sugeriria, Walther?

– Primeiro, abrirmos mais uma Veuve e mais tarde a oferecermos àquelas senhorinhas que estão sorrindo para nós.

Não contenho o riso.

Que mais?

– Alguns homens e mulheres inteligentes, que muito tenham lido, especialistas em suas áreas, tenham poder de decisão política no País. Nenhum ministro poderá ser político ou indicado por partidos. Que governem através de colegiados, com soluções técnicas e racionais. Se não conseguem votar bem, permitindo bancadas religiosas, ruralistas, da bola, da corrupção, mandem à merda a representatividade. Diminuam-na ao quase nada. Aumentem os impostos sobre os ricos, façam minguarem as tesourarias, e voltem a criar um Estado investidor na infraestrutura pública, apoio à indústria, aos serviços urbanos, e de saúde e educação.

– É estou mesmo sonhando ou já bêbado.

– Nada. Peça para o Luís me mandar as provas do livro. Quero ver se essa biografia existe mesmo. Agora, venha atrás de mim.

Sigo-o um tanto cambaleante.

– Como a casa as está recebendo hoje? Divertindo-se? Quero apresenta-las ao famoso jornalista de São Paulo, Rui Daher. Seus nomes, por favor.

– Maria Vitória e Maria Clara.

– Prazer, irmãs?

– Sim.

-Aceitam nos dar os prazeres de tomar uma taça de champanhe em nossa companhia?

Quando percebi a palavra prazer no plural, tive certeza que minha sócia visitaria a fazenda agendada para o dia seguinte sozinha.

Nota: sem tags, imagens, musiquinhas. Medo da segunda perda. Bom domingo.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

2 Comentários

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  1. Muito Bom!

    Hoje tem post do Rui Daher!

    Além do mais, psicografando Ariano Suassuna, Luis Melodia  & Darcy Ribeiro….Ueeeeba! 

    (Seu Rui, põe gelo não no Old Parr. É melhor sem!)

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