Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Identidade pernambucana e revolução, por Urariano Mota

E vem mais esta descoberta que se apoia em fatos vivos: a história é tão entranhada em nós, que acontecimentos mais recentes manifestam instantes de mais de cem anos.

Identidade pernambucana e revolução

por Urariano Mota

De um artigo que escrevi para o site Pernambuco Contemporâneo, retiro as linhas a seguir.

Quando falamos sobre identidade pernambucana a partir da sua história, não falamos com a visão voltada para o passado, que desconhece o presente e o futuro. Não. Apenas tentamos compreender por que somos desta maneira e de outras. E vem mais esta descoberta que se apoia em fatos vivos: a história é tão entranhada em nós, que acontecimentos mais recentes manifestam instantes de mais de cem anos. Se não, acompanhem por favor o caso do Hino de Pernambuco, música, quase dizia “frevo”, de 1908. Testemunhem o “absurdo”. Esse hino histórico virou sucesso de carnaval, dos mais modernos carnavais, nos dias de hoje. Acompanhem aqui

Ou aqui

Lindo, permitam-me dizer. As vozes se levantam na multidão como uma revolta em comícios políticos. Pessoas cantam o hino de Pernambuco em pleno Marco Zero, algumas “fantasiadas” com a bandeira do estado:

“Coração do Brasil, em teu seio
Corre sangue de heróis – rubro veio
Que há de sempre o valor traduzir
És a fonte da vida e da história
Desse povo coberto de glória,
O primeiro, talvez, no porvir

Salve ó terra dos altos coqueiros!
De belezas soberbo estendal!
Nova Roma de bravos guerreiros
Pernambuco, imortal! Imortal!”

Sobre esse fenómeno escrevi de passagem no romance “A mais longa duração da juventude” em determinado trecho. Nele, o personagem Gordo se ergue da mesa onde os amigos bebiam, e em posição respeitosa canta alto o Hino de Pernambuco. “Salve ó terra dos altos coqueiros…”. Foi eletrizante. O bar inteiro se levantou. Foi de embriagar, ao delírio, ver a pequena multidão de bêbados cantando em uma só voz, todos em pé, num coro comovente, toda a Portuguesa sob a regência do Gordo no meio da  madrugada. Quando acabou aquele instante cívico no álcool, todos os personagens se sentaram. Por que o Gordo cantou o Hino de Pernambuco na madrugada? Aquilo era um hino, que se tornou momento de resistência à ditadura.

Mas voltemos um pouco antes, à frase em que menciono a bandeira de Pernambuco usada por foliões durante o carnaval. Acreditem, a sua origem vem da Revolução Pernambucana de 1817. A bandeira foi criada antes da independência para ser a bandeira do Brasil sob um regime republicano.  Hoje, ela vai além do carnaval. Falam até mesmo, em mais de uma pesquisa, que é a mais bonita do Brasil, mais linda e patriótica que a bandeira brasileira. Em dúvida, olhem   

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Essa é a bandeira agitada no ar, nas arquibancadas de estádios de futebol, por torcedores pernambucanos de qualquer time, Sport, Santa Cruz ou Náutico,  por todo o Brasil. Uma bandeira que é de todas as torcidas, de todos pernambucanos no mundo.

E quando mencionamos a origem da bandeira na revolução de 1817, ela nos leva a um dos seus heróis, o Frei Caneca. Preso durante quatro anos, retornou às lutas até a morte  em 1825. No dia 13 de janeiro daquele ano, três carrascos se negaram a enforcá-lo, e por isso ele foi executado a tiros de arcabuz sob ordens militares. Nos autos do processo, foi indiciado como um dos chefes da Confederação do Equador com estas palavras: “escritor de papéis incendiários”. E o que era acusação infamante se tornou a maior honra, como podemos ver no seu belo poema aqui:  

“Entre Marília e a pátria
Coloquei meu coração:
A pátria roubou-m’o todo;
Marília que chore em vão.
Quem passa a vida que eu passo,
Não deve a morte temer;
Com a morte não se assusta
Quem está sempre a morrer.
A medonha catadura
Da morte feia e cruel,
Do rosto só muda a cor
Da pátria ao filho infiel.
Tem fim a vida daquele
Que a pátria não soube amar;
A vida do patriota
Não pode o tempo acabar.
O servil acaba inglório
Da existência a curta idade:
Mas não morre o liberal,
Vive toda a Eternidade!”

O certo é que a relação entre os pernambucanos e seus valores nunca é de indiferença. É sempre apaixonada. Ela alcança até os costumes de consumo, que causam espanto por fugirem do comportamento geral de outros lugares do Brasil. O historiador Gustavo Arruda conta, registra e prova que o guaraná Fratelli Vita chegou a vencer no Recife a concorrência  até mesmo da poderosa Coca-Cola. Segundo ele, que escreveu livro sobre o refrigerante pernambucano: “Quando a Coca-Cola chegou ao Recife, ela tomou um susto com a aceitação do guaraná Fratelli Vita. No Recife, não tinha pra ninguém, o preferido era Fratelli Vita, o povo já estava acostumado. Havia e resistiu o hábito de consumo do guaraná Fratelli Vita. E associar esse hábito à qualidade do produto, ao sabor. A Coca-Cola quando chegou aqui, a concorrência não foi fácil pra ela. E até o fim do refrigerante recifense, a Coca-Cola não conseguiu vender mais que a Fratelli Vita. Até novembro de 1972”.    

Mas até mesmo no sotaque pernambucano ocorre um lugar de conflito. As classes representadas nos doutores tradicionais, que pretendem mandar no português, os poderosos da comunicação nas tevês e rádios, no pernosticismo da chamada elite, acham sempre que a fala de uma cidade ou não se deve falar ou se corrige. Pela massificação das telenovelas e dos jornais ao vivo, pelos locutores não se trata nem de corrigir, o objetivo se transforma em divulgar uma nova fala, pela repetição como um hit parade da pronúncia. E em lugar de sotaque, a nova língua passa a ser uma ortoépia.

Enfim, entre tantos fenômenos, para mim o Recife é a maior identidade pernambucana. E num pequeno exagero, acrescento: a maior identidade  do mundo.

O texto inteiro pode ser visto aqui https://pernambucocontemporaneo.com.br/a-identidade-pernambucana  *Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/identidade-pernambucana/

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

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