Lago Malawi, por Sônia Meneghetti

Escrito em Mangochi, cidade de Malawi à beira do Lago Malawi, em 2006. Na época a autora tinha 17 anos de idade.

Enviado por Fábio de Oliveira Ribeiro

Lago Malawi, por Sônia Meneghetti

Naquele momento fronteiriço em que a vida invade o sonho, dois ou três galos anunciavam o alvorecer. Sem luz, cansada de ler à luz da lamparina, havia dormido muito cedo. Virei-me e revirei-me algumas vezes. E nada de sono. As primeiras luzes me arrastaram para fora da rústica cabana, insuportavelmente abafada.

Arrumando o cabelo, camiseta, bermuda e um par de sandália melissa, transformado em chinelos, fui experimentar a temperatura do imenso lago que me convidava a um passeio pela praia. No inexistente horizonte cinza azulado que, àquela hora, cinco da manhã, indiscernia céu e água, um punhado de barcos estava chegando da faina noturna.

Em sentido inverso, da terra à água, dezenas, várias dezenas de mulheres, bacias equilibradas sobre negras cabeças, traziam ao lago as vasilhas, panelas e copos, da noite anterior. Algumas traziam balaios de roupas. Outras, escovas de dente. Crianças atiravam-se à mesma água que colhia restos de comida, bochechos provavelmente mentolados de volumosas cuspidas de abluções, espumas de pedras de sabão provenientes das roupas batidas e torcidas e de sovacos lavados de um número indeterminado de moradores. E patos, pateando, como convém.

Pelas tantas pus-me a contar as crianças. Cansei quando passei de trezentas. A metade da população do Malawi (13 milhões) tem menos de 15 anos. Pouquíssimos velhos. Morrem antes, a expectativa de vida ao nascer é inferior a 50 anos.

A chegada dos barcos é uma festa, talvez umas 500 pessoas inundam a beira do lago, para auxiliar, com bacias de diversos tamanhos. Crianças sendo crianças, correm como galinhas, gritos e gargalhadas.

A única branca, estupefata, avança distribuindo good mornings e rauareiuduins sem moderação, sempre retribuídos. Ouvi poucos buanas ou boss, modo depreciativo que os locais, em quase todo o continente africano, sapecam nos desengonçados branquelos. Ao contrário, simpáticos sorrisos – banguelas, ou teclados de piano, quem se importa? – e inúmeras perguntas – curiosos – prontamente respondidas.

As crianças adoram ser fotografadas. Os mais velhos, nem sempre.

Milhões de prateados peixinhos miúdos, umas manjubinhas, colhidos em bacias e baldes, são postos a secar, até a madrugada seguinte, constituindo a principal fonte de proteína, tragada duas ou três vezes ao dia com a indefectível “polenta” à base de uma fina e alva farinha de milho, cujos brancos grãos, pré-cozidos, lavados naquela mesma água, são postos a secar junto à platinada colheita noturna, pelas apertadas redes.

Cotidiano, como qualquer outro, cada um dedicando-se ao que lhes é de regalo. Crianças sendo o que devem ser, adultos ocupados com o que lhes toca, parlapatando uma estranha língua, exclamada, quase sempre exclamada, ou espremida em expressivas interjeições.

Uma dignidade rica em meio à evidente carência de recursos, denunciada pelas rotas, puídas e esgarçadas vestes, pelos vasilhames plásticos multicoloridos, pelas menos frequentes panelas, amassadas pelo uso, areadas ali mesmo.

Fui-me, rica porque estufada de sorrisos, arrastando os chinelos, pensando sobre tudo, e sobre o nada. Sol alto, quando a cotidianidade daquela simpática gente lhes impunha, como qualquer cotidiano, outros fazeres. Um galo, evidentemente atrasado, cantou e me fez ainda mais feliz.

Escrito em Mangochi, cidade de Malawi à beira do Lago Malawi, em 2006. Na época a autora tinha 17 anos de idade.

Sônia Meneghetti escreve como sente e faz o leitor perder o fôlego. O texto sugere que ela foi capaz de sentir profundamente aquele mundo muito diferente do dela. Esse “vivenciar o mundo do outro” só é possível com o coração. Com a razão só conseguimos julgar e sempre que julgamos criamos um abismo entre nós mesmos e o objeto julgado.

Há uma verdade literária no texto comentado: a beleza que se constrói sem malícia ou exageros estéticos consegue ser mais bela do que aquilo que foi produto do cálculo estilístico de um artista experiente. Aos 17 anos a autora já era uma escritora muito melhor do que eu jamais conseguirei ser.

No texto de Sônia Meneghetti, a complexidade do real parece ficção. Mas a emoção que ele transpira é genuína e nunca poderia ser considerada o resultado de um artifício retórico. Lago Malawi é uma verdadeira obra de arte e por isso resolvi divulga-la. Confesso que foi um pouco difícil convencer a autora. Como muitos escritores amadores ela é muito autocrítica.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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2 Comentários

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  1. Grato Fabio por compartilhar.

    Sonia: voce imagina o que de bom traz para a alma com teu olhar e pensar? Compartilhar e se arriscar no lago Malawi com o Outro é muito é incomparavelmente mais dificl/complicado/possivel.
    Parabéns!!

  2. Texto escrito em Mangochi, cidade de Malawi à beira do Lago Malawi, em 2006. Na época a autora tinha 17 anos de idade.
    Parabens Sônia Meneghetti. Sua carreira com escritora realmente começu bem cedo.

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