Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Lula em Água Fria, por Urariano Mota

(Foto de Francêsca Calado)

Por Urariano Mota

De frente para o que um dia foi o Cine Império, ia ser inaugurada a primeira agência do Banco Azteca no Brasil. Homens, mulheres e crianças tomam conta do largo, como antes nos idos 60 invadiam o mesmo lugar para dançar o frevo. Mas em 27 de março de 2008 não vêm para o carnaval, nem muito menos prestigiar a inauguração de uma agência pequena, sem luxo. “Lula vem aí. Lula vem inaugurar o Banco”. Por isso se reúnem tantos, tantas e tantinhos, em curiosidade e aflição. A massa, esta massa periférica, sonha, carece de melhor vida, de dinheiro, como a senhora Suzana, gorda, de olhos rasgados de índia. 

– O que a senhora quer de Lula? eu pergunto.

– O senhor é do grupo dele?

– Não…. (vontade tenho de dizer “eu sou do grupo da senhora”, mas me calo)

– Eu quero 150 reais.

– Pra quê?

– Pra comprar mordalela, pão, carvão, guaraná, cerveja, queijo, milho, aí eu faço pamonha, .manguzá…

– Isso tudo com 150 reais?!

– É só uma ajuda. Eu já tenho o carrinho de vender lanche. É só uma ajuda….

Ela aperta nas mãos uma folha de caderno dobrada, com o seu pedido, para o Presidente do Brasil. Estamos do outro lado da cerca, formada por cavaletes de ferro que circundam todo o Largo de Água Fria. Repórteres passam e não se dignam a nos dirigir um olhar, a misericórdia de uma atenção.  Como são conscientes de que a sua importância está na razão direta da distância desta massa! Dos periféricos, os que estamos do outro lado da cerca, espremidos entre pivetes e cavaletes. Uma repórter, muito jovem, se dirige a duas autoridades, isso devem ser, porque são gordos, altos, brancos, e vestem ternos de xadrez. A sua fotógrafa se aproxima, e como não pode ficar o tempo todo acompanhando uma conversa que não lhe diz respeito, dá-lhe as costas, vai caminhar em um diálogo com o seu celular. Belas fotos teremos.

Lula demora. Para uma inauguração marcada para as 15 horas, já são 16 horas. Rapazes com terno preto, em um calor de 38 graus, fazem a segurança. Rijos como estátuas, com o olhar vazio de bronze.

– Desde que hora vocês estão aqui? pergunto. 

– Desde 9 da manhã.

– Com esse terno preto, debaixo deste sol?

– É bronca.

– Quanto a diária?

– Vinte e cinco reais mais almoço.

Noto que um supervisor lhe traz uma bala. De café. É bronca. De vez em quando, em um ponto da multidão, há gritos, aplausos. Os seguranças olham em direção ao tumulto. É apenas algum gaiato que anuncia, “chegou Lula”. Se eu sair do meu lugar, aqui junto ao cavalete, perderei o assento, dos pés. Eu me pergunto como esses jovens se mantêm impassíveis desde as nove da manhã. 16 e 30. Há um alvoroço. Há uma onda que me empurra, há uma corrente de eletricidade a passar por todos os corpos. Minha mulher, a fotógrafa, que faz sua estréia de máquina e de profissão, me desperta: os soldados da PM tomam posição de sentido.

– Olha o batedor!  Olha os batedores!

Então vem um carro escuro, que passa pelo “portão” de cavaletes, e somente pára diante do que será o Banco Azteca.

– Eu pensei que Lula fosse passar por aqui. Mas ele vai descer na frente da agência.

Uma senhora por trás me ensina: é ele não. “Lula não faz isso não”. Por isso mais tensos nos posicionamos. Súbito há um estouro, não de fogos, nem de boiada. Há um rumor que cresce, que se torna incontrolável, que mais lembra um orgasmo coletivo. Sofrido, querido e esperado. É Lula! É Lula! Todos gritam. Os berros se fazem ouvir mais alto, ensurdecedores. Mulheres, meninos, homens chamam a atenção do Presidente, querem chamá-lo, e ele não sabe para que lado do cercado de cavaletes se dirija. Na hora uma idéia tenebrosa me ocorre: se caísse um raio aqui, todos morreriam felizes. Mas essa idéia não atinge palavras. Lula vem para o nosso lado. É ele. A minha fotógrafa se esquece em absoluto de mim, o repórter, e avança para o círculo estreito onde todos lhe querem tocar a mão. Aos gritos. Aos prantos. Aos empurrões. À força, ainda que contidos e reprimidos pelos jovens rapazes de negro.    

A última vez em que vi algo semelhante em Água Fria foi em 1965, no último dia de carnaval. Tocou Vassourinhas e não havia força que contivesse o gozo da multidão em fúria.  Agora sem frevo, sem orquestra, desta vez a multidão delira como se estivesse diante de um astro pop. O presidente passa a ideia de um santo, porque tem poderes para ajudar os que padecem, e de fascínio, porque mostra como um homem do povo consegue ser importante. Por isso as mulheres gritam, “Lula, meu lindo!”, por isso os homens apertam-lhe a mão, com força e calor, por isso os meninos levantam a cabeça, todos os meninos levantam a cabeça. Então eu percebo que os periféricos não se embriagam somente de álcool e frevo. De Lula também se embriaga a gente. Como no carnaval fora de época em 2008, em Água Fria, subúrbio do Recife.  

 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

4 Comentários

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  1. Estive com Lula, o metalúrgico algumas vezes, em S.B. do Campo

    Morávamos ambos no bairro Assunção.

    Anos mais tarde, quando já era militante de carteirinha no Diretório da V. Mariana, em São Paulo, pude ficar bem perto dele em comícios, carreatas etc etc.

    Era sempre aquele sorriso de covinhas e, safadamenre, dobrando a língua, como num muxoxo também.

    Tem aquela forma de abraçar passando a mão na nuca da gente, acarinhando a gente- bem nordestinamente afetivo.

    Certa vez, em campanha para qualquer cargo, acho que para deputado federal Constituinte, antes do comício na Sé, onde os majoritários falariam etc. etc. conversei com ele nos fundos do palco sobre meu pai, já com mais de 70 anos, ex-metalúrgico, ex-líder sindical e de sua PROFUNDA ADMIRAÇÃO POR ele, Lula. Emocionado me abraçou, perguntou se eu tinha um papel; eu tinha. Escreveu um recadinho para meu pai que o guardou aqui em Barbacena até a morte.

    Por fim, quando fiz 60 anos, me dei de presente o Lula e disse-lhe isso, já ex-Presidente. Fui a um Diálogo Capital, da Carta, sobre a África, conversei com Lula, abracei-o (e ele a mim, claro, e os seguranças pirando ali), me deu dois beijos e me acarinhou a nuca, COMO PRESENTE DE ANIVERSÁRIO.

    Não tirei foto com ele; não teria coragem de pedir isso. Não com Lula.

  2. Celebração
    Bela homenagem! Um tocante poema.

    Lula e seu magnetismo hipnotizante. Quem sabe ainda tenho a sorte de apertar-lhe as mãos e sentir, além de pressentir, sua lendária energia.

    Bonito e oportuno relato. Este homem é parte da nossa história e a despeito dos erros cometidos – e os há, muitos – seu legado é distintivo e definitivo em muitos e sofridos corações brasileiros.

    Uma beleza este post.

  3. Lula na nuvem, por Pedro alexandre Sanchez, 11.09.2012

    Lula, na nuvem

    Pedro Alexandre Sanches

    Uma nuvem humana acompanha Luiz Inácio Lula da Silva quando ele se locomove. Por vezes, a bruma se adensa, pulsa e canta, emocionada: “Lula, Lula, olê olê olê olá”. O cordão humano abraça também o candidato a prefeito de São Paulo pelo PT, Fernando Haddad, que vem logo atrás dele, rumo ao palanque.

    A quadra do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, no centro da capital, sedia nessa terça-feira, 11 de setembro, um encontro – aberto – entre Lula, Haddad, sindicalistas e quem quiser chegar. Repórter especializado em música há 18 anos, já orbitei em tempestades pop nacionais (Racionais MC’s) e internacionais (Rolling Stones), mas nunca vi tamanho furor ao redor de um pop star como vejo nesse meu primeiro encontro com este ex-presidente do Brasil.

    À custa de política (e não de entretenimento), Lula atiça gritos, choros, suspiros, mãos e corpos estendidos para alcança-lo, câmeras filmadoras e fotográficas doidas por devassá-lo, tumulto, tremedeira, alvoroço, corre-corre. Por onde o bloco maciço de gente passa, o caminho fica apertado e abafado para Lula, apesar de ele ter todo o espaço do mundo para se mover.

    Logo no início de seu discurso, o ex-líder sindical sentado à mesa da plenária com os sindicalistas traz a eufórica plateia petista para perto de si citando o câncer e a luta contra o câncer, a fragilidade da garganta (“não vou poder me esgoelar como me esgoelava no passado”), a necessidade de preservar a voz. “Eu costumava falar de pé, do lado de lá da mesa – até estava pedindo pra Fernando Haddad ir pra frente da mesa quando for falar -, mas é que preciso ficar com um copinho d’água do lado. Toda hora eu tenho que dar uma bicadinha na água, porque a garaganta não tá boa. Quando era dirigente sindical, eu dava uma bicadinha noutra coisa”, solda a empatia, sob gargalhadas gerais.

    Sentada ao lado dele à mesa, a candidata a vice-prefeita com Haddad, Nádia Campeão (PCdoB), cuida de manter o copo de Lula cheio até aqui de água. Ele se empolga com a própria oratória e, mesmo sentado, logo se esquece de dar as prometidas bicadas. “Toma água!”, alerta um espectador. “Obrigado, querido”, Lula retribui o afago – e beberica.

    Em sua narrativa, entrelaça as razões da escolha por Haddad às razões da escolha anterior por Dilma Rousseff, sua sucessora na presidência. Faz elogios rasgados ao candidato enquanto lhe dá puxões de orelha leves, zombeteiros. “Não pensem que foi uma tarefa fácil”, cutuca, referindo-se ao processo de convencer PT e aliados a aceitar o candidato Haddad. E prossegue dirigindo-se diretamente a seu ex-ministro da Educação. “Eu vou lhe dizer uma coisa que muita gente dizia pra mim: ‘Ô, Lula, o Haddad nem cumprimenta a gente’. Eu dizia: ‘É que ele tem vergonha. Ele é tímido. Ele não tá habituado’. A Dilma também era assim. Eu ia visitar obra com a Dilma pelo Brasil afora, eu abraçava todo mundo, e a Dilma lá no canto. Eu dizia; ‘Dilma, abraça! Aperta! Aperta!’. E ela começou a abraçar e apertar. E gostou. E este aqui vai gostar muito mais.”

    A plateia se diverte, e ele emenda com conselhos diretos ao mais novo novato petista nos palanques. “Mas é pra apertar, é pra abraçar, com o mesmo carinho e do mesmo jeito homem e mulher. Não é pra ter diferença no abraço, não, até porque a chefa tá aí do lado”, Lula diz, chamando atenção para a esposa de Fernando, Ana Estela Haddad (foto à direita). “Não sei se vocês sabem, o ProUni foi um pouco ideia desta mulher”, afirma, apontando pafra Ana Estela e colocando-a no coração da campanha pela prefeitura de São Paulo. “Ela levou, no meu governo, pra um outro ministro da Educação, que entendeu que era preciso pensar, mas saiu do ministério, e não pensou.”

    Fernando recebe tanto os elogios quanto as provocações com o mesmo olhar agradecido e afetuoso, de quem está diante de um pai. Os olhares amorosos entre os Haddad se estendem a Lula. Frederico (foto à esquerda), o filho mais velho, de 20 anos, estudante de direito na USP, sorri de orelha a orelha na plateia, diante das palavras do ex-presidente – que, ali em cima, afaga os eleitores jovens, sabedor de que estes, ao chegar à universidade com auxílio de programas como o ProUni, tornam-se formadores de opinião e consolidam votos de suas famílias.

    O fio narrativo familiar (que talvez conte com Dilma como mãe exigente) é aproveitado imediatamente por Lula, que incorpora cada brasileira e cada brasileiro à família simbólica que quer narrar: “Eu achava que nós precisávamos construir uma candidatura nova para São Paulo, de alguém que nunca tivesse disputado, mas que tivesse compromisso com o partido, com movimento social e sindical, com aqueles que moram na rua, que catam papel”. É o momento de ele se exaltar e testar a potência da voz. “Nós estamos cansados de ver pessoas durante a campanha tratarem o pobre como se ele fosse rei e depois das eleições tratarem o pobre como se ele fosse bandido aqui nesta cidade”, endurece. Previamente conquistada, a plateira urra e delira de fato.

    Lula não é simplesmente retórico. A colmeia humana que o acompanha para lá e para cá se parece com o Brasil. É múltipla e plural em sentidos racial, étnico, etário, socioeconômico. Seja junto ao povo ou nas áreas tidas como “vip”, o enxame que se forma a seu redor é tudo, menos homogêneo. Há Frederico e há Zilah Abramo, 85 anos, fundadora do PT. Há senhoras negras que tentam vaga ao lado do ex-presidente-retirante nordestino-operário e meninos brancos de dez anos que gritam “Lula, eu sou seu fã!”. Diferente do chuvisco monocromático da São Paulo dos Jardins e de Higienópolis, a nuvem de Lula é uma democracia – sofrida, levada no empurra-empurra, mas uma democracia.

    Na hora de discursar, Fernando atende ao pedido do padrinho político: vai para a boca do palco, e leva Ana Estela consigo. O filho Frederico, aqui embaixo, abre o sorrisão mais uma vez. Haddad pai discursa: “A nossa encomenda não é ganhar a eleição, é ganhar o coração desta cidade, com um projeto generoso, tolerante, que combate a desigualdade, mas celebra a diferença – a diferença de negros e brancos, de mulheres e homens, de religiões, orientação sexual, perspectiva, visão de mundo”.

    Na mesma sentença, devota cuidado retórico e olhar apaixonado a Lula, enquanto direciona mira aos adversários do PRB, Celso Russomanno, e do PSDB, José Serra: “Eu tenho muitos padrinhos poderosos. Repito, tenho padrinhos poderosos. São aqueles que organizaram os sindicados, os partidos progressistas, os catadores de material reciclável, os movimentos de moradia, das favelas. Tenho origem, há quase 30 anos sou filiado ao PT. Nunca pulei de galho em galho. Na hora da tristeza e na hora da alegria, da crise e da comemoração, eu fiquei do mesmo lado, e vou ficar do mesmo lado até o fim da minha vida. Nós todos aqui temos os mesmos padrinhos e madrinhas: é o povo que organizou a sociedade brasileira para mudar para melhor, o povo que recusou a senzala, a escravidão, que combateu o trabalho escravo, o preconceito contra o trabalhador, o migrante, a mulher, o negro”.

    Despedidas feitas, Lula puxa Fernando para descer com ele pela frente e se juntar aos militantes que assistiram à plenária. O mestre desconhece saídas pelos fundos, e o aprendiz toma lições vivas de contato íntimo e profundo com os cidadãos.

    O ato termina. O público embandeirado se dispersa. A nuvem persevera, agora pairando ao redor da saleta onde Lula se refugia. Abrindo caminho com delicadeza entre fãs e seguranças, Frederico leva um amigo para dentro da saleta – o rapaz faz aniversário hoje, 11 de setembro, e quer de presente uma foto com o ídolo. Sai um minuto depois, exultante. Passam-se mais minutos, Lula não sai, a nuvem não chove. Todo mundo espera, com paciência.

    Lula finalmente se prepara para ir embora. Tira fotos, posa, sorri, abraça, beija. Anda devagar, um passo por vez dentro da neblina de carnes e ossos. Um rapaz negro vestido de verde-e-amarelo escala os degraus que pode para fotografar a cena do alto. “Deixa o homem descansar!”, uma admiradora afofa a nuvem com carinho e preocupação. Os seguranças empurram o homem adiante, como a querer apressá-lo e poupá-lo do desgaste. Ele, parece feliz feito pinto no lixo, exibe pressa nenhuma em vencer os poucos metros que o separam da condução para ir embora. Reconhece um companheiro que acena mais à distância, contraria os seguranças, volta atrás, cumprimenta, conversa. O carro preto se vai, e a nuvem ainda tarda a se dissipar.

    Uma última observação, de quem também custa a se desprender da nebulosa: Lula, duplipensante pela própria natureza, começou seu discurso falando em preservar a garganta – e discursa por 24 minutos cravados. Menos de três minutos depois do aviso, revela que estará com Haddad em dois novos comícios, no extremo sul da cidade, neste sábado, 15 de setembro: no Capão Redondo, às 17h, e no Grajaú, às 19h. Irá com Haddad, pela primeira vez na campanha, à periferia, habitat pelo qual passeia com desenvoltura. Entre o centro e a periferia, a nuvem se move velozmente – e, quando fala, todo mundo para para ouvir.

     

  4. Já era assim quando ainda

    Já era assim quando ainda tinha barbas pretas, era muito bravo e vinha ao meu bairro fazer campanha. Tinha o dom de hipnotizar. Tenho saudades inclusive da nossa juventude, tudo era possível.

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