Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Melões e Biquinhos, por Rui Daher

Primeira escultura

Sempre que vou visitar ou receber, profissionalmente, pela primeira vez, uma mulher, fico em dúvida sobre o tratamento formal que irei usar. Senhora ou senhorita? Mrs., Miss, Madame, Mademoseille, e assim por diante.

Não mais adianta esperar pela aparição da dita-cuja e tentar acertar pela aparência. Anciãs e sinhás-moças hoje se confundem no vestir e na simbologia.

Botar reparo nos dedos anulares, esqueçam. As boas e velhas alianças no anular, únicas, solitárias, para demonstração explícita de estado civil, caíram em desuso ou vivem disfarçadas entre inúmeros anéis e badulaques nos dedos femininos, até mesmo os dos pés.

Fenômeno novo, tenho visto meninas e meninos com uma só aliança, mais larga e moderna, no anular da mão direita. Vou direto e pergunto à moça: “está noiva”? A resposta vem com um sorriso brejeiro: “não, é de compromisso com o meu namorado”.

Ah, bom, compromisso. De quê? Aluguel, contrato de fidelidade pré-nupcial, caderneta de poupança em conjunto, mesma marca de energético, nunca votar no PT?

Mais provável ser nada específico, justo ato genérico de amor que somente os dois reconhecem.

Dia desses, visitando grande empresa com extensa cadeia de lojas, deveria procurar uma certa Aparecida.

No caminho, fui matutando como tratá-la. Na portaria, devo perguntar pela senhorita ou senhora Aparecida? Lembrei-me que os sinais aparentes pouco contam. Chute, não gosto. Aparecida poderia ser desde Nossa Senhora, senhora de ares formais, ou mesmo uma jovem e uma miúda Cidinha.

Também não aprecio aquele negócio de “dona”. Além de meio geriátrico e, pior, prepotente, está mais para o “ter” do que para o “ser”, que prefiro.

Da mesma forma, acho bobão quando me chamam “seu” Rui. Passo dias a pensar de quem eu gostaria de ser.

Hoje em dia, tenho optado por uma tática razoável, mas não completamente isenta de equívocos.

Chego nas portarias de fábricas, edifícios inteligentes, lojas, fazendas, simples casinhas adaptadas aos serviços e comércio, e pergunto, como fiz ao segurança-porteiro da tal cadeia de lojas:

“Bom dia, por favor, tenho reunião com a Doutora Aparecida”.

No Brasil, “o doutor”, seja você um ou não, tanto faz, é bastante valorizado. Ergo assim o status da senhora ou senhorita, e o meu, que falo com o alto escalão da empresa.

Vez ou outra a situação se complica. Pode haver mais de uma Aparecida na organização. Como aconteceu.   

– Qual doutora Aparecida? A Cida dos Melões ou a Cida dos Biquinhos?

Estranho. Sobrenomes, segmentação por produtos, apelidos não seriam, nunca um porteiro usaria de tal descortesia, ainda mais usando um boné do elegante São Paulo F.C.

Departamentalizo a resposta ao porteiro:

– Não sei. Ela é da Expedição.

– Ah, então é a Melões. Um momento que vou avisá-la. Seu nome e RG, por favor.

No 3º andar, um rapaz me leva à sala da doutora Aparecida. Dou as três educadas batidinhas regulares na porta e me apresento, mesmo ela estando de costas teclando no computador:

– Bom dia, doutora Aparecida. Muito prazer, Rui Daher.

Sem se virar ela pergunta:

– De onde mesmo?

– Da empresa de produtos para jardinagem. Marquei com a doutora há mais ou menos um mês.

– Tem certeza que foi comigo?

– Bem, na portaria me indicaram que a área de logística era atendida pela doutora Cida Melões.

Lentamente, ela começa a girar a cadeira. Uma figura enorme, gorda, longos espaços separam os botões da blusa. Quando ela retira os óculos, vejo olhos vermelhos mais furiosos do que cansados. Fuzilam-me:

– Primeiro, senhor, como é mesmo?

– Rui.

– Sou doutora não. Segundo, qualquer pessoa de rasa educação, me trata de senhora Aparecida. Vê essa aliança aqui na minha mão esquerda? Demorei muito até encontrar alguém que merecesse enfiá-la nesses dedos grossos que poderiam furar os seus olhos e vingar os meus melões. São grandes, sim. Separados de meu corpo, talvez, pesem mais de 20 quilos, mas a nenhum homem ou mulher, ainda mais do seu ridículo tamanho, dou o direito de tratá-los como frutas rasteiras.

– A senhora me desculpe, mas pensei que pudesse ser seu sobrenome.

– Ah, no plural, é? Meu nome é Aparecida Purificadora dos Santos. E tem mais. A Cida que o senhor procura é a Biquinho. Pergunte aí fora por ela.

Despedi-me com uma reverência: “Até mais, senhora Purificadora dos Santos. Boa sorte em sua tarefa”.

“Não terá mais”.

Não quis procurar a Biquinho. Sei lá o que ouviria. A mim sempre tratarão por você ou, agora velho, senhor.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

17 Comentários

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    1. …além de inteligente e

      …além de inteligente e sutil; tanto assim que muitos leram e não entenderam. A falta de qualidade do jornalismo atual, a falta de cultura literária do brasileiro médio, a violência e o golpismo explícito em quase tudo que se publica como notícia hoje em dia, tudo isso faz com que a maioria das pessoas jamais baixe as armas e tenha a sensibilidade de apreciar uma boa crônica.

      1. O que posso dizer?

        Volto aqui, Sr. Rui Daher, para lhe contar como redigi o comentário em que a suposta Biquinho do seu conto  reagiria caso fosse procurada e nominada durante a entrevista.

        A reação (brava) da “doutora dos melões” me levou a imaginar que haveria algum tipo de reação, também forte, da Biquinho. Ou, quem sabe, uma reação de agrado, como se tivesse se sentido elogiada.

        Na vida real, já vi reações inusitadas de pessoas que de repente são nominadas por apelidos que elas próprias não sabiam antes existir. Ou seja, Biquinho poderia ser assim nomeada pelo porteiro, mas desconhecer o apelido, e ficar muito irada se fosse assim chamada por quem a procurasse.

        Foi então que imaginei os 2 tipos de reação (da Biquinho) se o representante comercial a tratasse por  “Sra. Biquinho”. 

        Lendo agora o que o Sr. escreveu, após o meu comentário,  sou levado a crer que o Sr. o teria levado para o campo pessoal – embora, em minha concepção, o que  imaginei e escrevi  estaria no campo puramente ficcional, como uma de duas possíveis falas de Biquinho, se seu conto tivesse tido uma continuidade (em minha concepção).

        Lamento.

        E vou tentar deletar o comentário que passo a chamar de infeliz, tendo em vista  sua resposta. 

  1. Inverossímel

    História insossa. Dispensável.

    Segundo, acho inverossímel que uma pessoa possa tratar outra com essa indelicadesa, principalmente como ele próprio disse: (…) “visitando grande empresa com extensa cadeia de lojas” (…).

    Uma grande empresa não teria uma funcionária desqualificada desse naipe. E se tivesse não seria uma grande empresa, ou então ele está se auto desqualificando.

    1. “Uma grande empresa não teria

      “Uma grande empresa não teria uma funcionária desqualificada desse naipe”:

      Verdade.  Os funcionarios desqualificados TODOS, sem excessao, trabalham pra PF.  E pro judiciario.  E pro senado.  E pras ANA’s. E pra media brasileira…

      Alguem quer continuar?

       

      Rui:  Parabens!  Nao eh todo mundo que me faz gargalhar sozinho nao!

    2. Não verdadeiro,

      pessoas deseducadas em grandes empresas? E nas pequenas, sim? Verossímel. Tá onde? Acertou aoenas quando escreve que estou me auto desqualificando … da burrice.

  2. Dia das frutas.
    Antonio Prata

    Dia das frutas.

    Antonio Prata escreve hoje.

      Não entendi nenhum dos dois.E o que entendii é muito subjetivo– se Rui é confuso, imagine este :

    O engruvinhado da mexerica

    Ela andava reclamando da forma como ele fechava as portas, “Não bate! Vira a maçaneta e puxa!”, ele vinha implicando com o tempo que ela mantinha aberta a geladeira, “Pensa antes no que você quer, depois abre!”. Quando ela dirigia, ele ia cantando as marchas, feito um técnico no banco de reservas: “Quarta!”, “Terceira!”, “Quinta! Oitenta! Bota a quinta!”. Quando ele dirigia, ela desdenhava dos caminhos como um Waze contrariado: “Por que cê tá subindo a Augusta?! Pega a Nove de Julho!”. “Não, Rebouças não! Rebouças nunca! Vai pela Gabriel!”. No dia em que discutiram feio a respeito do lado certo para começar a descascar uma mexerica -“Por cima! Todo mundo sabe! Aquele engruvinhadinho tá ali pra isso!” versus “Por baixo! É uma dedada só, puft!”- decidiram que era preciso diminuir a convivência.

    Passaram a jantar em horários diferentes. A ler cada um numa poltrona, em vez de dividirem o sofá. Às terças, ela ia ao bar com as amigas. Às quintas, ele jogava futebol. Melhorou, mas não resolveu. Ele resmungava do cheiro de fritura com que ela se deitava na cama. Ela o reprimia pelas roupas suadas, espalhadas no banheiro. E, quanto às mexericas, bem, continuavam irredutíveis.

    Decidiram, então, dormir em quartos separados. À noite, se despediam e iam cada um prum lado do corredor. Ele via a série dele, ela via a série dela. Em algumas noites, até, viam a mesma série, mas cada um dando pause quando quisesse, botando legenda na língua que bem entendesse -antes, ela sempre queria pôr em inglês, “pra praticar”, ele sempre queria pôr em português, “pra entender”: acabavam nem praticando nem entendendo, mas discutindo. Mesmo em quartos separados, as rusgas continuavam. Ele precisava parar o carro atrás do dela, à noite, atravancando sua saída, de manhã?! E custava muito a ela botar o iPad dele pra carregar, depois de ler o jornal, vendo a bateria no vermelho?!

    A solução, acreditaram, era morar cada um numa casa. Voltariam a ser namorados, cada um com o seu mundinho, como na época da faculdade. Foi bom por um tempo, mas -de novo- não resolveu. Ele atrasava pro cinema. Ela discordava do restaurante. Na casa dele não tinha os cremes dela. Na casa dela não tinha as lentes dele.

    Um belo dia, que de belo não teve nada, tiveram de admitir que a convivência era impossível. Sempre haveria algum incômodo, algum detalhe, alguma idiossincrasia de um a pinicar a paciência do outro. A saída era se separar. A distância acabou com os velhos problemas, mas criou um novo, imenso: eles se amavam, sofriam vivendo sozinhos. Não que quisessem voltar. Sabiam que de briguinha em briguinha, de discussão em discussão, o caldo entornaria, mais uma vez.

    Então chegaram, enfim, à conclusão de qual seria a única forma da relação funcionar, sem picuinha nem saudade: nunca terem se conhecido. Se apenas imaginassem um ao outro, amantes ideais, pairando no éter, num mundo sem marchas, sem Rebouças, sem mexericas, sem legendas, sem geladeiras, sem cremes, sem lentes, sem carros atravancando a garagem e sem baterias de iPad avisando que resta apenas 10% da carga assim que o jornal acaba de ser baixado, seriam felizes para sempre. 

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