Izaias Almada
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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Memória emotiva (Final), por Izaías Almada

Dizei agora, vós que me ledes, mas dizei com sinceridade, sem o intolerável sentimento dos piedosos ou a dissimulação das almas domingueiras e caridosas: quem mais, naquele fim de mundo, poderia amar uma princesa de muletas?

Memória emotiva (Final)

por Izaías Almada

         Os fracos raios de sol da manhã vieram acordar-me. Sentia frio. Procurei pela manta que me agasalhara durante a noite. Nada. Abri os olhos e espreitei ao redor. Outro nada. Por fim, estirado na horizontal, vi que estava ocupando sozinho todo o banco de madeira. Em frente, minha mãe e tia Alice continuavam dormir a sono solto. Alguma coisa de anormal se passara. Afligi-me. E ela, a minha amada? Onde estaria o meu porquinho da Índia?

         Corri os olhos pelo vagão e com o coração apertado vi que lá também não estava o resto da família. Procurei remover o embaçado da janela de vidro. O trem havia parado numa das estações do percurso. Consegui distinguir o cais da estação e nele o pequeno grupo de pessoas que se encaminhava para a saída. Alguns ainda ajeitavam as malas e as bagagens acabadas de descer. Junto à porta do chefe da estação, como que à espera daquela minha busca, estava ela com a mesma manta xadrez, agora jogada sobre os ombros.

         O sono e o cansaço não lhe tiravam a beleza, mas o olhar – no entanto – denunciava alguma tristeza. Pela despedida, talvez? Ou por se mostrar inteira, como realmente era? O quadro que se desenhou à minha visão de menino tinha alguma coisa disforme, cruel, se assim me posso expressar. Continha não só a inevitabilidade da despedida, mas, sobretudo, a consciência de que nunca mais a veria, nem sentiria o calor daquelas santas e delicadas mãos ou o cheiro agradável que se desprendia do seu corpo, dos seus cabelos.

         O desenho mostrava algo mais… Mas, então, porque não me acordara a minha amada? Mesmo que me tornasse para ela apenas uma brincadeira noturna! Eu era o seu príncipe, com certeza. Nada mais importava naquele instante. Não importava que ela usasse… Muletas! Mas então?!… Era isso! O quadro recompunha-se, mas asseguro-vos, numa outra perspectiva, numa dimensão que já não era a mesma. As tiras de metal que sustentavam aquelas pernas semimortas, a manta cobrindo os ombros e parte do colo, o não querer acordar-me, o semblante tristonho junto à porta do chefe da estação. E aquelas muletas! Firmes, inquestionáveis, agressivas diante de tão cândida beleza.

         Não, não. O que eu vislumbrava de tristeza naquele rosto não era nem um pouco pela separação, pela despedida, mas sim por um pudor natural, pela possibilidade de evitar que eu a visse como realmente era: uma paraplégica! Tive vontade de sair correndo para abraçá-la, de gritar que não me importava com aquelas malditas muletas. Dizer-lhe que seu corpo era para mim mais do que perfeito: a cor dos olhos, o desenho dos lábios, a pele macia, os seios redondos e carnudos, as mãos… Mãos escolhidas e abençoadas por Deus. Mãos que procuraram em mim, na disponibilidade da minha adolescência, o gesto, quem sabe, irrealizável com outros amores, negados ou inatingíveis…

         Dizei agora, vós que me ledes, mas dizei com sinceridade, sem o intolerável sentimento dos piedosos ou a dissimulação das almas domingueiras e caridosas: quem mais, naquele fim de mundo, poderia amar uma princesa de muletas? Quem dela cuidaria depois, abandonada que seria naqueles sertões mineiros?

         Indiferente ao que eu sentia, o trem apitou anunciando o reinício da viagem. Para mim, um apito de dor e lamento: o grito solitário da saudade antecipada. Deu-me ela, da plataforma, seu último aceno e arrastou-se com suas pernas fininhas para fora da estação, para fora do meu mundo. Sem sequer imaginar que deixava para trás um homenzinho. Um homenzinho deveras orgulhoso em poder contar aos amigos o seu primeiro e invejável caso de amor, omitindo – muito naturalmente – como havereis de compreender nos adolescentes, o pormenor incomodo das muletas.

         Peço-vos agora, após todos esses anos, as minhas desculpas por tão juvenil omissão. Penso que, com isso, faço voltar minha pequena história, sem moralismos ou preconceitos, ao âmbito da nobreza de onde jamais deveria ter saído.

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(*) – Conto do meu livro “Memórias Emotivas” / Ed; Mania de Livro.

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro. Nascido em BH, em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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