Memória emotiva III (*)
por Izaías Almada
“O Senhor é meu pastor, nada me faltará… Deitar-me faz em verdes pastos e guia-me mansamente pelas veredas da justiça…!”
O salmo 23 é por certo um dos mais belos e conhecidos salmos da Bíblia Sagrada. Digo-vos que cresci lendo e apreciando esse e outros salmos bíblicos, a cantar hinos de louvor a Deus e a seu bem amado filho, Jesus Cristo. Mas, ainda criança, no inquieto fulgor dos meus treze anos de idade, descobri que outro dos livros bíblicos, o Cântico dos Cânticos, falava com voz mais forte e livre a linguagem do rapaz que crescia em mim.
A natureza, fonte da vida, naquilo que tem de mais primitivos entre os seres humanos, isto é, o desejo e a posse do ser amado, transbordava na beleza e sabedoria dos versos que lá vinham escritos, desdramatizando muitos dos pecados com que nos aterrorizavam a nós pequeninos. Era como descobrir na própria palavra de Deus o antídoto para o pecado original. Inconcebível que, depois de tantos e tantos séculos, ainda tivéssemos que pagar a fatura por Adão e Eva.
Afinal, se o mesmo livro sagrado nos mostrava ser natural o desejo e a atração que o homem e a mulher podem sentir um pelo outro, é porque tal desejo não deveria ser confundido com o pecado e sem celebrado como a forma de comunhão mais íntima e atraente do amor. O desejo carnal, o sexo, visto dessa maneira, não poderia ser um pecado perante os olhos de Deus, a não ser, pensava eu, que todos nós continuássemos a nascer por obra e graça do Espírito Santo.
Peço-vos imenso perdão por essas pequenas e sacrílegas divagações, mas elas, como vereis, estarão sempre ligadas à minha memória ou, se me permitis o atrevimento da linguagem, à metafísica de uma inesquecível primeira aventura erótica.
Dizia-vos que fui eu um bom leitor dos salmos bíblicos. E não só. Também aprendi a ser um vencedor nos concursos bíblicos, espécie de competição religiosa entre adolescentes metodistas e que consistia na inocente disputa para ver qual de nós, com destreza, habilidade e maior rapidez, conseguia encontrar e ler em voz alta um determinado versículo da Bíblia Sagrada perante o conjunto dos participantes.
Orgulho do meu pai nessas pequenas olimpíadas religiosas de salão era eu movido apenas pelo desejo de mostrar-me àquela que viria a ser minha primeira namorada. Cada versículo lido em público transformava-se na possibilidade concreta de um olhar mais revelador, de um tocar de mãos ou de um ousado beijo nos lábios, até configurar-se o momento crucial e inevitável do ato físico motivado por essas sensações.
Mas desses atos físico ainda não sabíamos o suficiente, apenas ouvíamos dizer ou líamos às escondidas. Como também nos informávamos dos atalhos e segredos existentes para se atingir e consumar parte do mesmo objetivo. Apresentava-se para muitos de nós o momento da grande prova, a prova contra o atrevido e incansável Satanás e seus anjos aliciadores; a primeira masturbação.
Que atitude deveria tomar um adolescente cristão ao descobrir o sexo e a possibilidade dos seus prazeres? Cobrir-se de orações para espantar o pecado? Fingir-se de morto? Ignorar que a vida e a natureza, como o próprio Deus as concebeu, invadiam-lhe o corpo com força e determinação, tornando-o apto, na melhor das hipóteses, para a continuação da espécie? Ou mandar tudo às favas e pegar o touro a unha?
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(*) – Conto do meu livro “Memórias Emotivas” / Ed; Mania de Livro.
(CONTINUA)
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro. Nascido em BH, em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
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