Antonio Helio Junqueira
Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.
[email protected]

Memórias quarentenárias, São João e milho verde, por Antonio Hélio Junqueira

A garotada era convocada para cortar, dobrar e preparar as folhas pré-selecionadas da cobertura das espigas, que serviriam para ensacar as voluptuosas pamonhas antes da sua imersão completa nos imensos caldeirões de água fervente.

Memórias quarentenárias, São João e milho verde

Uma crônica gastronômica para Nina Horta

por Antonio Hélio Junqueira

Caetano…. Taí um cara que eu adoro com paixão confessa, eterna, irremediável… irreprimida. Fã alistado na primeira hora, persigo-lhe, desde há muito, todos os passos, no bom e velho sentido da tietagem honesta e mansa (bem entendido!), que nada tem a ver com as práticas dos sinistros stalkers das telas e cenas digitais de hoje em dia.

Caetano tem múltiplos significados para mim, garoto nascido e criado no interior quente da região Noroeste paulista, mais rural que urbano, quase que afastado de tudo e imerso em uma saudade imensa de coisas que ainda nem tinha conhecido. Caetano chegou para mim em uma noite morna na praça da minha cidade, no final dos anos 1960, e de pronto me encantou por tudo: sua voz melodiosíssima, seu espalhafato tropicalista, sua interpretação subversiva de tudo e … os caracóis dos seus cabelos. Sim…foi isso que me pegou de pronto! Eu que até então comia o pão que o diabo amassou para domesticar minha rebelde cabeleira, a partir daquela hora enxerguei, como nunca, possibilidades libertárias. Claro que adotei de pronto o cacheado revolucionário, para sucessivos escândalos familiares, escolares e sociais, até mesmo entre as amizades menos suspeitas, mas que se logo se revelaram pouco abertas ao assanhamento da novidade.

Desde então, sempre volto a Caetano… e para mim esses felizes e recorrentes encontros são muito prováveis (previsíveis, talvez?), uma vez que a coleção completa dos seus discos se encontra dispersa por muitos pontos da casa…sempre à mão, para qualquer emergência, ou para a emergência de qualquer sentimento mais digno de cuidado e atenção….totalmente ativados nesses dias pandêmicos e quarentenários.

Ora, e daí? Onde entra a Nina Horta nisso tudo?

Ué! Ela entra precisamente puxada pela porta da memória do milho verde da minha infância. Milho verde que até hoje me transporta para um passado irreconstrutível, improvável (para muitos, tenho certeza) e perdido para sempre, menos nas minhas reminiscências…tão saudosas, quanto ainda vivas.

Ora, e agora? Onde entra o Caetano aí, pô?

Ué!  Naquela música do Caetano não fala: “Viva São João! Viva o milho verde”? Pois, então. É assim que tudo se junta.

Na perambulação à toa dessa interminável quarentena pandêmica, dei de cara com os “Doces bárbaros”, aquele disco icônico da tropicalidade então meio riponga do quarteto Caetano, Bethânia, Gil e Gal. Pus para tocar e estanquei, de pronto, na faixa “São João, Xangô menino”, nascida, lá pela metade dos 70, da profícua, benfazeja e sempre bem-vinda parceria de Caetano com Gilberto Gil.

Explico logo a ligação dos pontos: tudo o que se diz sobre milho verde e suas festas anuais de colheitas me remete imediatamente às minhas verdadeiras “temporadas do milho verde” particulares, que sempre foram parte importante dos períodos mais felizes, lúdicos e memoráveis da minha meninice interiorana. Eram um tipo de festa de celebração da chegada das safras do cereal ainda imaturo, recorrente ente os meses de abril, maio ou junho de cada ano, e que serviam de pretexto para a aglomeração tumultuada e ruidosa de toda a família e vizinhança. Todo mundo participava: dos mais velhos, já encaducados, aos mais jovens ainda enfraldados…E era muita gente ajuntada! Naquela época, isso podia e não era escândalo para ninguém!

O ponto de convergência da balbúrdia sempre foi o quintal da minha avó materna, Iriné. Sim, é Iriné, mesmo! Acho que seu nome vem de algum tipo de corruptela kaingang (que a gente tem pé na tribo) do afrancesado Irène (que a gente tinha rabo preso com a França também, mas nunca entendi muito bem o porquê e até onde isso ia). Bem, pois o acento mudou de lugar e de direção e deu um novo sentido e uma nova sonoridade não apenas à palavra, mas à toda minha memória e aos meus afetos.

Chamávamos de temporada por que a faina do milho verde não durava apenas um ou dois dias…aquilo ia…. Começava na coleta das espigas, parte nas roças e nos quintais, parte no mercado ou nos ambulantes que vinham oferece-las à porta da casa.

Uma vez somada a quantidade boa e certa, a multidão obreira era convocada. Vinha tia tanto casada quanto solteira, sobrinho, viúva, parente que ninguém nem lembrava, moleque, vizinho…teve vez que até padre veio. E a gente se juntava e começava daí nossa longuíssima labuta cerealífera.

As espigas de milho verde eram distribuídas em montanhas. Em torno delas, se organizavam diferentes corporações debulhadoras, o que podia se dar segundo diferentes critérios, desde simpatias mútuas e habilidades para fuxicos específicos, quanto por faixa etária, interesses amorosos etc.

A operação de retirada da palha envolve, para quem não sabe, diferentes etapas, todas a serem conduzidas com atenção e cuidados esmerados, o que não as torna, absolutamente, menos descontraídas e divertidas. A primeira coisa é cuidar de escolher e separar as melhores folhas verdes que encapam as espigas. Elas serão necessárias para a construção dos envoltórios das pamonhas doces e salgadas, além de servirem para forrar os pratos para outras iguarias derivadas: curau, bolo e muito mais. A folha ideal deve ser nova, de coloração verde-claro, mais tenra e um tanto menos fibrosa que aquelas já maduras. Não pode ter sujeiras e menos ainda furo de lagarta, porque daí, além de enfeiar a pamonha, acabaria prejudicando o seu cozimento, por infiltração de água fervente na massa espremida e compactada do quitute.

Nessa etapa de descasca e desfolhamento, dois fenômenos interessantíssimos ocorrem simultaneamente, para diversão de todos e delírio dos mais pequenos. A primeira delas é a extração dos cabelos do milho. Eles possuem colorações brilhantes, maravilhosas, desde o mais louro ao quase preto, sem preocupação com qualquer tipo de mestiçagem, racismo ou discriminação. Os fios são muito longos, lisos, sedosos, muito fáceis de pentear e acariciar, como cabelos de verdade e, além de tudo, exalam um cheiro meio acre, meio doce, que nunca mais sai da memória de quem passou pela experiência do seu contato. Tanta sensualidade certamente provém da função biológica mesmo desses filamentos capilares sexualizados, mal saídos de uma recente e bem-sucedida polinização fecundante.

Os cabelos, uma vez cuidadosamente extraídos, serviam aos mais diferentes propósitos, transformando-se, especialmente pelas mãos mais jovens, em perucas, barbas, bigodes, cabeleiras de sovacos e de outras partes corporais, que é bom nem mencionar.

A segunda operação associada ao descascamento e ansiosamente aguardada era a extração das “bonecas”. Para que não sabe ou não se lembra mais, eram as espigas de milho malformadas e não desenvolvidas que ficavam no interior da espiga “correta”. Era, assim, como um tipo de irmão gêmeo que não vingou. As “bonecas” tinham diferentes tamanhos e, por isso, compunham diversos tipos de arranjos familiares: umas se transformavam em papais e mamães, outras em filhinhos e filhinhas (na época não usávamos termos como filhinhes ou filhinhxs, até mesmo porque sequer tínhamos noção de ideologia de gênero ou outras questões mais modernas). As mais tortinhas e encurvadas faziam as vezes de vovôs e vovós nas familhinhas montadas.

Uma vez livres das palhas, as espigas passavam por intensos e criteriosos processos de seleção. Tinha que tirar todo tipo de grão velho, chocho, bichado e separar toda sorte de impurezas que porventura tivesse atravessado a linha de montagem.

Era chegada a hora da ralação. Bacias metálicas imensas eram dispostas pelo chão do quintal e no meio delas eram posicionados ralos grossos, para esmagar as sementes imaturas do milho. E aí começava um trabalho de longíssima duração, regado a muito café com pão e manteiga, gargalhadas, piadas e cantorias.

Jamais serei capaz de esquecer do cheiro doce do grão fortemente ralado, da cor e da espessura do leite grosso e amarelo-palha obtido de tanta espremeção. Delícia da criançada era ser regada e respingada no corpo e na cara com essa seiva primitiva, tribal e nutritiva. Tenho certeza de que os pingos que então caíam também na alma nela permaneceriam para sempre.

Atingidos os volumes adequados do suco do milho, era chegada a hora da separação dos farelos residuais. Eles não seriam jogados fora, porque, na verdade, nada se jogava fora. Comporiam parte da massa e das camadas crocantes dos bolos. Era muito bonito de ver toda a coagem, processada através de alvíssimos panos de algodão.

Já longe do envolvimento das crianças, as mulheres da família e da vizinhança, lideradas pela imbatível vó Iriné, dedicavam-se à elaboração de uma série infindável de quitutes derivados do milho verde. Aí desfilavam, senhoras absolutas da festa, pamonhas salgadas e doces. As salgadas podiam ser puras, inteiras e compactadas, ou então ligeiramente recheadas com pedacinhos de queijo branco, ovos cozidos ou o que mais desse na telha das cozinheiras de plantão. As pamonhas doces, por sua vez, incorporavam principalmente toletezinhos de goiabada.

A garotada era convocada para cortar, dobrar e preparar as folhas pré-selecionadas da cobertura das espigas, que serviriam para ensacar as voluptuosas pamonhas antes da sua imersão completa nos imensos caldeirões de água fervente. O que mais exigia perícia nessa fase era o amarrio das pamonhas. Só os mais experientes tinham o privilégio do acesso a essa operação, uma vez que uma amarração e um laço frouxos poderiam colocar em risco toda a indústria familiar em marcha. Os mais jovens olhavam de soslaio para ver se aprendiam com eles, na esperança de um dia assumirem lugar nessa nobilíssima hierarquia.

Enquanto as pamonhas ocupavam a centralidade do processo produtivo, outras empreitadas ocorriam em linhas paralelas e subalternas de fabricação doméstica. Bolos, curaus e mingaus tinham ritmos próprios e ocupavam a mão de obra feminina mais jovem e particularmente interessada em demonstrar socialmente seus dotes culinários na busca de “arranjar marido”. Dizia-se, à época, que marido se fisgava pelo estômago e muitas nisso acreditavam piamente e com razão, já que nem sabíamos o que viria a ser fast food, junk food, food truck ou quaisquer outros truques alimentares, cuja oferta iria se avolumar e popularizar com o passar dos anos, nas décadas seguintes. Comida, então, era comida de verdade, quase sempre feita em casa, por esposas amorosas e dedicadas.

Da fervura das pamonhas eu não tenho, de fato, tantas lembranças quanto gostaria. Isso porque eu era, naquele período, ainda muito pequeno e às crianças era veemente negado acesso às panelas fumegantes, dado o evidente risco que representavam. Mas me lembro muito bem daqueles corpos boiantes que iam, aos poucos, sendo pescados com o auxílio de escumadeiras de inimagináveis tamanhos. Para mim, até hoje, o reconhecimento do ponto certo de retirada das pamonhas da borbulhagem representa um saber hermético, mais próximo da alquimia do que de qualquer ciência possível. Vagamente me lembro, contudo, que sinais decisivos eram dados pela mudança na coloração das palhas, do verde típico e vivo para um amarelo-dourado esmaecido, meio sem graça.

Assim como as pamonhas, as demais iguarias iam ficando prontas em sequência e se acumulavam nas pias, mesas improvisadas e qualquer outra superfície emergencialmente disponibilizada. Nessa fase do processo produtivo da indústria familiar, eu, com a graça que a pouca idade me permitia, podia desfrutar de meus parcos minutos de fama grossa. Era chegado o tão esperado momento da polvilhação fininha da canela sobre a doçaria. Pura delícia, para mim, poder espalhar aquele tipo de terra fértil e amarronzada sobre o Saara amarelado dos curaus.

Chegávamos agora, enfim, à verdadeira hora da tortura, pois que nadinha de nada podia ser comido ainda quente, sob o risco de certíssimas, certeiras e inescapáveis dores de barriga de proporções cavalares (era o que nos diziam os velhos, mais sábios). Tinha que esperar…esperar…e as horas não passavam…por Deus, elas não passavam.

Mas, a partir de certo momento (porque não há mal que sempre dure!), como que por magia, um certo cheiro de café quente de coador de pano passava a se insinuar no ambiente, contaminando casa e quintal…Era o sinal de que a comilança ia começar… e, de fato, começava.

Pamonhas, bolos, curaus, mingaus passavam a circular e a disputar a preferência de bocas, olhos, narizes e estômagos vorazes e famintos mais de afeto e de alegria do que, de fato, de comida.

Era hora de abandonar, ao menos temporariamente, as limpezas e secagens ao sol dos embranquecidos sabugos, que mais tarde serviriam a propósitos e destinos tão diversos e arriscados como alimentação de fogo de fogueira e de fogão a lenha, confecção de improváveis e delirantes brinquedos ou, ao menos, como perigosíssimas armas para uma boa e futura batalha campal. Era hora da mesa e da boca cheia! Hoje sei que de coração pleno também.

O que sobrava desses primeiros banquetes ia se amontoando na geladeira, no guarda-comida, nas estufas e nos fornos, em cima do fogão …e ia, também, para sacolas e embornais de parentes, amigos, vizinhos e até de gente meio cara de pau, pidona, que aparecia assim como que do nada…De qualquer forma, a promessa de muitos e muitos futuros deleites, nas minhas “temporadas do milho verde”, já estava assegurada por aquela cornucópia da momentânea abundância cerealífera.

Caetano sempre, sempre, sempre me emociona e surpreende…, mas, por essa das memórias do milho verde, eu juro que não esperava! Obrigado, Caetano, obrigado, Nina Horta, por me terem posto aqui sentado a escrever e a rememorar tanto afeto, tanta gente, tanta comida. O cheirinho que estou sentindo agora vem de um lugar muito distante no tempo e bem longe no espaço, mas vem, também, de um lugar bem pertinho: meu coração saudoso, aquecido e emocionadamente grato.

Viva São João! Viva o milho verde! Sempre!

Antonio Hélio Junqueira – Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.

 

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

6 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

    1. Que bom que gostou Maria Luisa…nossas memórias afetivas são verdadeiros ancoradouros nesses tempos pandêmicos, tão difíceis de atravessar.
      Espero que continue gostando das minhas caipirices e gastrocrônicas.
      Muita saúde e alegrias!
      Hélio Junqueira

    2. Que bom que gostou Maria Luisa…nossas memórias afetivas são verdadeiros ancoradouros nesses tempos pandêmicos, tão difíceis de atravessar.
      Espero que continue gostando das minhas caipirices e gastrocrônicas.
      Muita saúde e alegrias!
      Hélio Junqueira

  1. Hélio,
    Parabéns por sua crônica, parabéns por suas memórias. Me remeteu também à cozinha de minha avó no interior do Espírito Santo, que além da pamonha e dos quitutes das festas juninas (que se estendia até julho, época de férias escolares) sempre tinha uma surpresa gostosa para a mais de dezena de netos que com ela passava a conviver, quando saíamos das grandes cidades onde nossos pais viviam. Como é bom ter experimentado coisas similares como as que você narrou. Sinto por minha neta que não poderá ter algo assim em suas memórias, já que os costumes da “modernidade” não mais contemplam e valorizam essas situações inocentes e de grande interação familiar.

    1. Caríssimo Fernando Mateus, boa tarde! Que bom que gostou da minha crônica. Fico realmente feliz em poder tocar outros corações, sensibilidades e memórias! Sim, nossas infâncias pertencem quase que a um outro universo, outro tempo, outras conexões….
      A mim me encanta, particularmente, manter vivas as lembranças de minha meninice interiorana, dos quintais, dos jardins e dos jeitos como as comidas eram cultivadas, preparadas e consumidas.
      Estou preparando outras crônicas sobre temas dessa natureza…espero que você venha a lê-los e a se divertir com eles. Grande abraço e cuide-se muito bem, para que logo todos os abraços possam voltar a ser ao vivo e a cores.

    2. Caríssimo Fernando Mateus, boa tarde! Que bom que gostou da minha crônica. Fico realmente feliz em poder tocar outros corações, sensibilidades e memórias! Sim, nossas infâncias pertencem quase que a um outro universo, outro tempo, outras conexões….
      A mim me encanta, particularmente, manter vivas as lembranças de minha meninice interiorana, dos quintais, dos jardins e dos jeitos como as comidas eram cultivadas, preparadas e consumidas.
      Estou preparando outras crônicas sobre temas dessa natureza…espero que você venha a lê-los e a se divertir com eles. Grande abraço e cuide-se muito bem, para que logo todos os abraços possam voltar a ser ao vivo e a cores.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador