Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
[email protected]

Mozart para Ângela, por Maira Vasconcelos

Cinco minutos de silêncio com Ângela: suficiente para provocar-me um abscesso – é, purificado e produtivo. Ela abre clareiras em pouquíssimo tempo. Às vezes, Ângela parece semente desregulada, que faz gerar mais rápido.
Será que Ângela modifica o tempo da minha terra?
Tudo isso é o que eu jamais saberei responder. E o que Ângela nunca irá descrever. Porque ela precisa fazer uso de mim, para que enfim rasteje meus olhos em seu estado de nascimento junto ao mundo.
Mas vou avisada: casca de ovo pode cortar.

A terra está a mover, mais uma vez, e Ânegla é responsável pela viscosidade e separação das atmosferas. Quando tomo café em público, reparo as pessoas ao redor e sentindo-me distanciada de tudo. Assim sei, que neste momento, está presente Ângela. Alguém sabe o que é sentir-se completamente desgarrado de si mesmo e do mundo? Eu sei. É desagradável e, às vezes, nada é capaz de consolar este estado-de-isolamento. Fica-se distante sem movimento e simpatia, e nada mais.
Escrever requer certa paralisia corporal.

Ângela deseja expressar-se porque o sol virou, foram varridos os nós do amarelo-dia – nós junto a outros vários nós, formam rolos amarelos infinitos e cotidianos. Isso é o que foi agora dissolvido, por isso, estou com Ângela; ela espera sempre esta partida, todos os dias, para logo poder aparecer. Então, eis que chegou o seu momento. Está tudo do outro lado-liso, e o escuro é seu alimento. Não sei de onde ela tira tanta força! Ângela lida com o peso constantemente. Ela é cheia de luz!, senão jamais enxergaria estando ali: no oco fundo da escuridão de todas as cores.

Meu Deus! Que seja possível entender: o escuro é tão colorido!, este é um recado de Ângela. Ela ama o teatro como se este fosse a sua eternidade!

– De repente, direi que esqueci todo o meu passado, de repente, falarei do anteriormente vivido como se não estivesse mentindo.

Ângela não poderá nunca dizer que é uma mulher de confiança!, preservar o passado não é a sua função. Não lhe importa a luta pela memória da sua própria vida-antiga. Ela está hoje presente, apenas pelo seu elevado poder de regeneração das coisas. A novidade reluzente colorífica justifica cada aparição de Ângela. Às vezes, desconfio que seu nascimento tem um único intuito: usar insanamente o passado para mostrar-se aqui! em cada sempre-estar. Chamar as pessoas de novo junto a ela.
Ângela tem crises de amplo aparecimento.

Quanto mais Ângela fala, e assim tão bem!, sem dar espaço para cochilos, e penseiros, tudo sai dela extremamente exato. Enquanto isso, eu tenho escrito cada coisa errada! Estou a equivocar-me com as palavras mais cotidianas. Mas Ângela é segura em tanta desenvoltura!, realmente ela é em mim uma revolta. Causa-me impressões repugnantes, ela está cheia de falta de compromisso e desleixo com o repassar da sua história:

– Nunca sei quando o passado de novo repousará.

Onde será que mais caseira esteve habitada Ângela? Os cômodos de qualquer casa bem usada são um abre-e-fecha – desfecho-e-renovação – da vida de um indivíduo no tempo desacomodado. Sua cozinha estava em lânguida penumbra, quase constantemente. Na velhice, há esta mania de se resguardar, e eu vejo isto através de Ângela – ela rasgou e fingiu esquecer todas as suas rugas.
Ângela nunca lidou bem com o tempo.

Ângela viveu tanto!, ficou bem velha!, e cuidava-se da morte como se pudesse remediá-la! Como se a vida pudesse ser preservada colocando cortinas por toda a casa, e uma chave de reserva para cada porta. Seu chaveiro era de um peso e de um barulho..! Trancar-se não paralisa o tempo, mas espíritos velhos não entendem essa lógica. E, claro, Ângela em seu final de vida não entendia nada dos movimentos de abrir-e-fechar.

Ah! Mas até quando irei escrever sobre e junto a Ângela? Gosto dos dias em que nos abandonamos e suponho criar meus escritos sozinha. Tem dias que já não sei mais quando é que estou realmente só.

Se Ângela está a falar entre (quase) todos os meus cafés! Vou sair destes espaços..escutar Mozart, mais uma vez..bem alto e forte, com mãos e pés que acompanhem melodias.
Vou ficar surda.
Ciao!

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador