Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Natal no shopping

 


 


 


Nesses dias próximos do Natal, não quero lembrar por quê, fui ao shopping. Fui, e comecei a circular, o que no shopping é uma forma de andar. Circulo e circulo, enquanto rumino coisas que para mim mesmo não estão claras. Penso em beber, ah, como cairia bem um chope no shopping, como desceria bem o líquido sobre uma garganta sem eloquência. Giro, como se andasse.


 


Então, súbito, cai sobre mim um som belo, lindo, que não identifico de imediato de onde vem. Sim, é Natal, mas não estou dentro de um conto de Dickens. Então, de onde vem essa beleza que escuto, perdido num mundo de mercadorias?


 


 


“Eu preciso descobrir


a emoção de estar contigo


ver o sol amanhecer


como um dia de domingo…”


 


 


Olho, estou em frente a um restaurante aberto, e as pessoas bebem e comem e gargalham e batem copos e fazem pedidos com escândalo, aos gritos, possessas e porcas. Mas ainda assim a beleza resiste por sobre o mar de insensibilidade:


 


 


“Eu preciso respirar


o mesmo ar que te rodeia


e na pele quero ter


o mesmo sol que te bronzeia …”


 


 


Então eu descubro de onde vem esse sopro de Dickens. Uma pianista velha toca solenemente a um canto. Ela não toca, vejo, ela desce os dedos com uma gravidade, com uma rigidez quase de mármore duro, como se fosse uma estátua que apenas movesse os dedos. Para quem toca essa velha pianista? Para que coração ela se dirige diante de uma barreira de barbárie?


 


“Eu preciso te tocar


e outra vez te ver sorrindo


e voltar num sonho lindo…”


 


 


Ela me lembra de imediato os comediantes, os palhaços, os clowns que não riem. Mas não, essa lembrança diz respeito somente a seu rosto que não reflete a emoção do que toca. Os palhaços têm melhor sorte, porque o público a eles responde. A pianista velha, com a sua rigidez facial, percebo então, é um alto escudo para que não a insultem mais do que fazem agora enquanto gritam por mais carne e mais vinho e mais champanhe e mais a porcaria toda que o dinheiro pode comprar. Agora compreendo que ela, dura como uma pedra, responde com um “desprezo-os como me desprezam”. Aos gritos de carne e vinho e chope, ela bate mais forte no teclado:


 


“Faz de conta que ainda é cedo…”


 


– Carne!


 


“.. e deixar falar a voz


a voz do coração.”    


 


Que dignidade há nesses artistas que tocam sem que ninguém os escute! Saio. A decoração do shopping é de um vermelho extravagante. Pois esta não é a cor do Papai Noel? Saio, preciso de ar, vou para a rua. O mundo desconcertado pode não merecer concerto, mas tem lógica. Existe um fio que vai da festa da mercadoria até o público que não ouve a música de um artista digno. Tudo é shopping.


  


 


   


 

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