Neorrefugiados, por Daniel Gorte-Dalmoro

De que terra saíram os brasileiros que hoje habitam essa praça? Que ameaças sofreram para ir morar na rua? Que segurança há ali, em barracas sob o relento, o frio, o intenso trânsito de carros? Quem os persegue?

Neorrefugiados

por Daniel Gorte-Dalmoro

O frio que faz na cidade de São Paulo não é extremo, mas torna mais difícil minha tarefa de sair da cama, às seis da manhã – é um fator a mais nessa dificuldade de acordar na República Federativa-Fascista do Brasil, em que vivemos desde 2016. Conseguindo me desvencilhar das cobertas, resta comer algo, cuidar dos gatos, ler alguma notícia (ou o último “xadrez”) enquanto tomo chimarrão para esquentar, até dar a hora de pegar o metrô e descer na estação Tietê. 

No espaço ao lado da rodoviária (pode-se chamá-lo de praça?), há cerca de três semanas um pequeno “campo de refugiados” voltou a se formar – havia um antes, que deve ter sido devidamente higienizado por algum programa da prefeitura, que levou essa visão triste para fora da vista, porque para uma parte da nossas elites e seus lacaios de classe média a prestações, pobreza não existe se não é visível. 

Refugiados pode soar estranho a brasileiros que estão simplesmente morando na rua – até porque um refugiado costuma ser alguém que se vê obrigado a sair de sua terra, por conta de uma situação em que corre risco de vida, para um lugar onde se sinta seguro. De que terra saíram os brasileiros que hoje habitam essa praça? Que ameaças sofreram para ir morar na rua? Que segurança há ali, em barracas sob o relento, o frio, o intenso trânsito de carros? Quem os persegue? 

Sem perguntar, deduzo respostas, e por isso insisto que ali estão refugiados – ou neorrefugiados, para marcar a distância de quem veio de outras paisagens, ainda que sua situação não seja nova na história do país – , saídos de sua casa para a rua, para uma praça onde julgam mais protegidos do que em uma viela escura, perseguidos por entidades desencarnadas e sem um rosto único, mas que cobram sacrifícios de gente como essas, vistas como semi-gente, semi-animais sacrificiais. São todas “pessoas marrons”, que uma vez Eliane Brum comentou em crônica, falam um bárbaro português em que não há espaço no seu mindset para fazer uma call de job do home-office após o brunch, talvez nem para bater uma bad por conta de seu freela ou de seu home estar um tanto down.

Os que ali estão, fica claro, não queriam estar. Há uma meia dúzia de barracas, algumas montadas com esmero, simulam casas, evocam desejo de um lar. Uma das “casas” em especial me chama a atenção: a maior e a mais à vista dos passantes, bem montada com suas paredes de lona forradas internamente com “cobertores de doação” (ou “cobertor de mudança”), dentro há uma outra barraca, essa de camping, onde há algo mais fofo que faz a vez de colchão. Nunca vi os moradores da casa, mas desconfio que seja ao menos um casal – me pergunto se alguma das muitas crianças que correm e brincam pela praça também mora ali. Semana passada notei que havia um caixote com duas garrafas de corote e cigarros – deviam vender a seus colegas de campo. Hoje havia uma bicicleta – sinal de possível trabalho de seus moradores, entregador de aplicativo –, estoque de cobertores de doação e um caixote de engraxate – quem engraxa sapatos hoje, ainda mais do lado de fora do terminal Tietê? Havia também um detalhe extra na “casa”: em uma das “paredes” foi feito um puxadinho com mais um cobertor de doação, bem precária, se tomada a “casa” principal como parâmetro – ainda que ela também seja bem precária. Está mais para uma casinha de cachorro, mas dentro dormia uma pessoa. 

Atravessando a rua, na alça da marginal Tietê com a ponte com a avenida Cruzeiro do Sul, outra meia dúzia de barracas – todas montadas num ar mais de prestes a levantar o acampamento. São também pessoas com mais posses, ao menos três das famílias ali instaladas: há um Fiesta de quarta geração, um Monza e um Monza modelo antigo (sendo que o carro foi parado de produzir em 1996). Quando eu tinha meus oito anos, lembro de em alguns domingos frios acordarmos cedo, eu e meu irmão, e levarmos cobertores para montar barraca dentro do Santana azul de meu pai, com gibis, papeis e lápis de cor – ligávamos o rádio do carro e ficávamos ali, brincando, a meia luz, já que a porta da garagem estava fechada. 

Evoco essa lembrança pelo ano dos carros, porque não há nenhuma similaridade entre a brincadeira de crianças de classe média em alguns domingos com a situação das crianças que ali vivem com suas famílias, domingo a domingo, sob interpéries e com o futuro mutilado de um país em frangalhos.05 de julho de 2021.

Daniel Gorte-Dalmoro é bacharel em filosofia e ciências sociais pela Unicamp e mestre em filosofia pela PUC-SP

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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