Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Norman Mailer X Muhammad Ali, por Urariano Mota

Eu corria o risco de nada escrever sobre Norman Maier, se não houvesse recebido de presente a sua grande reportagem literária de nome A Luta.

Norman Mailer X Muhammad Ali

por Urariano Mota

Em 31 de janeiro de 1923, nasceu o escritor Norman Mailer.  Autor de Os Nus e os Mortos, Os Exércitos da Noite, A Canção do Carrasco, a biografia Marilyn, entre outros livros, ele foi um dos criadores do chamado jornalismo literário. Muito bem, neste 31 de janeiro o dia é dele. Mas eu corria o risco de nada escrever sobre Norman Maier, se não houvesse recebido de presente a sua grande reportagem literária de nome A Luta. O amigo fraterno Hugo Cortez foi quem me presenteou o livro, na sexta-feira passada, para minha sorte. 

Então, dedico a Hugo Cortez as linhas a seguir.  

A Luta narra – atenção, por favor, para o verbo narrar –, conta a luta épica entre Muhammad Ali e George Foreman  em 30 de outubro de 1974, em Kinshasa, no país que chamavam à época de Zaire, atual Congo. Já antes da luta, todo o mundo sabia que iria haver mais do que uma disputa pelo título mundial dos pesos pesados de boxe. Muhammad Ali era o campeão mundial dos pesos-pesados até o seu título ser cassado por não atender à convocação do exército americano para lutar no Vietnã. Mas o bravo Muhammad Ali não se intimidou. Diante de Martin Luther King, em 1967, ele falou num discurso: 

“Por que me pedem para vestir um uniforme e me deslocar 10.000 milhas para lançar bombas e balas no povo marrom do Vietnam, enquanto os negros de Louisville são tratados como cachorros, sendo-lhes negados os mais elementares direitos humanos? Não, não vou viajar 10.000 milhas para ajudar a assassinar e queimar outra nação pobre para que simplesmente continue a dominação dos senhores brancos sobre os povos de cor mais escura mundo afora. É hora de tais males chegarem ao fim.

Fui avisado de que essa atitude me custaria milhões de dólares. Mas eu já disse isso uma vez e vou dizer de novo. O inimigo real do meu povo está aqui. Não vou desgraçar minha religião, meu povo ou a mim mesmo tornando-me um instrumento para escravizar aqueles que estão lutando por justiça, liberdade e igualdade…

Se eu pensasse que a guerra traria liberdade e igualdade a 22 milhões de pessoas do meu povo, eles não precisariam me obrigar, eu me juntaria a eles amanhã mesmo. Não tenho nada a perder por sustentar minhas crenças. Então, vou para a prisão, e daí? Nós estivemos na prisão por 400 anos” .

E assim foi condenado à prisão, além da perda do título, fora do ringue. 

Agora, podemos chegar mais perto do livro A Luta. Nele, Norman Mailer se revela um mestre no jornalismo que ele realiza como literatura. O escritor   mistura tudo, tudo, atualizando para o boxe o pensamento de que nada do que é humano lhe é estranho. E de tal modo mistura que, para se referir ao empresário Don King, por exemplo, ele escreve: 

“A quantidade se transforma em qualidade, disse Engels certa vez, e um trambiqueiro de grandes dimensões vira um financista”

Assim falou Engels para se referir ao esperto Don King…. E para melhor informar a qualidade do livro, sou obrigado a copiar trechos que não se encontram na internet, que dão um trabalho desgraçado para copiar. Mas me sacrifico em nome do que procuro esclarecer. Ao contar o quinto assalto da luta, Norman Mailer narra: 

“Ali, que estava nas cordas, passando por cima do bombardeio de Foreman vez por outra soltava um golpe no pescoço do adversário, como uma dona de casa enfia um palito de dente num bolo para ver se está pronto. Os golpes ficaram mais e mais fracos, e Ali por fim saiu das cordas e nos últimos trinta segundos do assalto desferiu seus próprios golpes, ao menos vinte. Quase todos acertaram o alvo. Alguns dos golpes mais duros da noite foram desferidos. Quatro direitas, um gancho de esquerda e uma direita se uniram numa combinação estupenda. Um golpe girou a cabeça de Foreman em noventa graus, um cruzado de direita com luva e antebraço que bateu na lateral da mandíbula; o contato duplo não tinha como Foreman não ter sentido; primeiro da luva, depois do braço nu, atordoando e abalando. Paredes devem ter começado a rachar no interior do cérebro. Foreman cambaleou e tropeçou e encarou Ali furiosamente, e foi atingido de novo, pá-pum!, mais dois. Quando aquilo acabou, Ali pegou Foreman pelo pescoço como um irmão mais velho castigando um irmão caçula grandalhão e bobo, e olhou para alguém na plateia, algum inimigo ou talvez um amigo rancoroso que tivesse previsto a vitória de Foreman, pois Ali, segurando George pelo pescoço, botou para fora uma longa língua branca”.       

É um massacre poético. Mas não um massacre de poesia, apenas uma poesia de massacre, se isso for possível. Trechos assim me acodem para falar que a grande literatura dos Estados Unidos do século XX se refere à barbárie. Ela se faz sobre  violência, assassinatos, crimes. Não sei se estou certo. Mas sobre que realidade norte-americana os escritores iriam mesmo falar? Penso em Hemingway, Faulkner, Truman Capote, no próprio Norman Mailer. No entanto, um pouco mais seguro sei que o trecho citado interioriza em todos nós a luta. Muhammad Ali  golpeia no pescoço de Foreman como uma dona de casa enfia um palito de dente num bolo. A cabeça que num soco gira 90 graus, vemos, e sentimos e ouvimos até o seu impacto, com o suor que salta do crânio de Foreman. E o gigante agarrado pelo pescoço como um caçula grandalhão. Norman faz o leitor vê-los, leva-o para a primeira fila em frente ao ringue, no dia da luta. Em páginas semelhantes, Norman Mailer nos lembra a diferença entre narrar e descrever, que o filósofo György Lukács certa vez definiu:

“E será que é o caráter completo de uma descrição objetiva que torna alguma coisa artìsticamente ‘necessária’? Ou não será, antes, a relação necessária dos personagens com as coisas e com os acontecimentos – nos quais se realiza o destino deles, e através dos quais eles atuam e se debatem?” 

Essa reflexão de Lukács se harmoniza com o que Hemingway – admiração confessa de Norman Mailer- fala na entrevista publicada no livro As Entrevistas da Paris Review: 

Se você descreve uma pessoa, o resultado é plano, como uma fotografia, e, do meu ponto de vista, é um fracasso. Se você a modela a partir do seu conhecimento, todas as dimensões estarão presentes”.

E assim é nos lutadores sobre os quais Norman narra. E de um modo mais claro, e não digo mais preciso, porque a precisão é do reino do tiro, não é do mundo revelado na literatura, digo: Norman Mailer faz jornalismo, mas de um gênero tal que já deixou de ser jornalismo, como no trecho a seguir 

“Faltando vinte segundos para o final do assalto, Ali atacou. Por sua própria avaliação, por aquela avaliação decorrente de vinte anos de boxe, com o conhecimento de tudo o que aprendera a respeito do que se pode e do que não se pode fazer em qualquer instante no ringue, escolheu aquela ocasião e, deitado nas cordas, acertou Foreman com uma esquerda e uma direita, saiu das cordas para atingi-lo com uma esquerda e com uma direita. Nesta última direita aplicou outra vez a luva e o antebraço, uma pancada estupefaciente que lançou Foreman aos tropeções para a frente. Enquanto ele passava diante de si, Ali acertou o lado de seu queixo e saltou das cordas, de modo a deixar Foreman próximo a elas. Pela primeira vez em toda a luta ele havia bloqueado o caminho de Foreman. Agora Ali alvejou-o com uma combinação de socos velozes como os do primeiro round, porém mais duros e mais consecutivos, três direitas capitais seguidas atingiram Foreman, depois uma esquerda, e por um instante surgiu no rosto de Foreman a consciência de que estava em perigo, e que deveria começar a procurar por uma última proteção. Seu oponente estava atacando, e não havia cordas por trás do oponente. Que deslocamento: os eixos de sua existência invertidos! Ele era o homem nas cordas! E então um grande projétil, do tamanho exato de um punho dentro da luva, penetrou no meio da mente de Foreman, o melhor soco daquela noite espantada, o soco que Ali guardara por uma carreira. os braços de Foreman voaram para os lados como os de alguém que salta de paraquedas de um avião e, nessa posição dobrada, tentou vaguear até o centro do ringue. Todo o tempo seus olhos ficaram voltados para Ali, e fitou Ali sem raiva, como se Ali fosse a pessoa que ele melhor conhecesse no mundo, que estaria com ele em seu leito de morte. A vertigem tomou George Foreman e o revolveu. Ainda dobrado pela cintura, naquela posição de incompreensão, os olhos o tempo todo em Muhammad Ali, começou a desmoronar e a ruir e a cair, mesmo não querendo ir ao chão. Ímãs mantinham sua mente nas alturas do campeonato e seu corpo buscava o chão. Foi ao chão como um mordomo de sessenta anos e um metro e oitenta, que acaba de ouvir uma notícia trágica, sim, caiu ao longo de dois demolidores segundos, ao solo foi gradualmente o campeão, e Ali voluteou em torno dele num círculo fechado, a mão pronta para atingi-lo mais uma vez, mas não precisou fazê-lo, uma escolta íntima durante o trajeto para o chão.”

Esses graves momentos podem ser vistos aqui 

Mas comparem o que viram com o lido. Percebem? O grande escritor narra o que os olhos não veem. Na vida, na luta, é tudo tão rápido, não é? Nem em câmera lenta alcançaríamos o que vê a grande narração.  É o caso de se falar enfim: consultem o vídeo e vejam a luta na prosa de Norman Mailer. 

*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/norman-mailer-x-muhammad-ali/ 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

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