Nossa vida é nossa primeira ficção, por Eliana Rezende

Por: Eliana Rezende

Li esta frase de uma quase xará: Eliane Brun em uma entrevista, e fiquei com ela na minha cabeça porque, desde sempre, acredito muito nas histórias que contamos para nós mesmos sobre o que vivemos ou experimentamos.

Em vários casos essas ficções de tão repetidas, quer pela palavra, quer por fragmentos de memórias passam a ser uma crônica. Uma crônica de nossa vida e de como reinventamos trechos de nossas histórias.

Desde cedo aprendemos que alguns fatos chateiam, envergonham, constrangem, ou seu contrário: enchem de alegria, de sons, de movimentos os nossos dias. Daí a necessidade de ora nos aproximarmos deles e ora nos afastarmos.

Seletivos em nossas memórias, aprendemos que podemos reinventar estes trechos e fazer deles uma longa história! E daí que as Memórias passam a compor este ficcional que vamos reescrevendo, aumentando e diminuindo de acordo com humores e vontades  Do ponto de vista de uma trajetória isto é perfeito, já que a ficção reinventada nos permite alterar percursos, ir e vir no tempo e no espaço e, quem sabe com isso, obter perdões, desculpas, razões, justificativas… não sei. O que vale é de fato pensar ficcionalmente e não ter preocupações com exatidões, verdades… elas não fazem parte da ficção!

A vida é assim um roteiro fantástico que permite, por meio de nossas memórias, edições, cortes, acréscimos e até omissões! De tão reais e palpáveis passamos a vida acreditando que de fato tudo aconteceu como na nossa narrativa ficcional.

Mas nesta grande ficção de longa metragem surpresas podem ocorrer:  podemos atuar ora como personagens principais, assertivos, determinados, cheios de vontades e opiniões. Mas às vezes, estamos mais parecidos a um objeto cenográfico. Em muitas vezes, a impressão é que trocaram os papéis e passamos inexplicavelmente à condição de um mero coadjuvante. Obra clara de um roteiro que às vezes não gostamos. Temos pressa de sair dele o quanto antes. E aí, vontades, opiniões, determinações aguardam a próxima cena ou um novo roteiro.

Mas o melhor mesmo é quando, de roteiro em punho nos sentimos diretores! Que maravilha! Afinal é aí,  que nos sentimos com poder de censura, corte, idas, vindas e voltas. Cenas fazem-se e refazem-se. E assim nossa história se constrói a cada nova visita de rememoração. Nos contamos muitas e variadas versões para os mesmos eventos. A ficção é assim um ato de vontade de fazer-se real. Não por sua existência de fato, mas por sua repetição em memórias. E talvez por isso, tenhamos tantas histórias a contar dependendo da plateia que escuta ou da vontade adormecida que nos visita.

Neste momento, alguns trechos de tão repetidos no nosso cinematógrafo parecem fixar-se pela eternidade. Mudamos-lhe tons, intensidades e o perpetuamos da forma como o lembramos. Outros, de tão fugidios não parecem nem ter sido vividos por nós. Perdem-se numa bruma difusa e espessa. São como uma história contada por outros: um roteiro de terceiros. Esquecemos dele. O deixamos lá numa gaveta de uma prateleira empoeirada de nossas memórias. Estarão para sempre ali, acomodadas sob o tempo. Mas quietas e sem interferências. É a quase não vida. No teatro do passado que é a nossa memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante.

E assim, os porões de nossa existência vão guardando trechos de roteiros inacabados, abandonados ao lado dos roteiros rabiscados, vividos, interpretados e reinterpretados. Vez por outra, alguns deles são levados aos sótons de nossa existência. E ali, de forma quase que surreal nossa ficção como que ganha asas e permite-se que suas páginas voem ao vento. Ganham a liberdade de simplesmente mover-se por nossa imaginação como janelas abertas em dias de sol e brisa suave e amena.  Trarão um movimento sereno de memórias agradáveis que merecem estar sempre ao lado de dias claros de outono com folhagens douradas ao vento. Nos seguirão onde quer que estejamos. E mesmo quando nossa ficção parecer tomada por negras nuvens sombrias encontrará refúgio nestes dias e memórias. E no tempo em que o período de nossas ficções estiverem no seu término servirão de conforto e ninho para compreendermos o sentido toda a nossa história, escrita em tantos roteiros e com tantos personagens.

Neste ponto, tendo em mãos todo o calhamaço de ficções que produzimos, surge o momento do balanço final. Como em todo o roteiro ficcional, chegamos ao ponto culminante: afinal qual foi a vida que foi de fato vivida?

Aquela cronológica que aconteceu uma única vez, data e horários precisos ou as sucessivas ficções sobre ela, carregada de tantos movimentos, inserções, omissões, tintas e sons?

Qual ficção construímos de todos os dias até então vividos?

________________

Posts relacionados:

Tempo: valioso e essencial

A morte nossa de cada dia

Contradições em vidas modernas

Conheça e desenvolva seu FIB (Felicidade Interna Bruta)

O papel e a tinta por Da Vinci

Palavras vincadas

Ruídos do silêncio

E se…

Quadro impressionista

De metáforas e escrita…

Quero meus direitos!

Ser feliz é obrigatório?

*

Publicado originalmente no Blog Pensados a Tinta

Curta/Acompanhe o Blog através de sua página no Facebook

Visite meu Site ER Consultoria | Gestão de Informação e Memória Institucional

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador