O app, um delírio literário diplomático tecnológico – parte 2, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Alianças internacionais foram rompidas. Pactos militares de mútua assistência foram assinados.

O app, um delírio literário diplomático tecnológico – parte 2

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Vide a parte 1 desse conto em https://jornalggn.com.br/cronica/o-aplicativo-um-delirio-literario-diplomatico-tecnologico-por-fabio-de-oliveira-ribeiro/

Todo plano é uma relação de coisas que quase sempre não acontece  ou que ocorre de maneira diferente. As pessoas casam imaginando que serão felizes e alguns anos depois estão divorciadas. Elas escolhem profissões acreditando que serão bem sucedidas e descobrem que até mesmo o sucesso pode ser uma prisão terrível. Algumas conseguem se adaptar às mudanças imprevistas, outras simplesmente ficam congeladas na frustração por causa de seus sonhos não realizados.

Já faz duas décadas que o app desenvolvido pela ONU para aproximar as pessoas está em funcionamento. Ele foi o resultado de uma parceria a princípio inimaginável: Google e Huwaei trabalharam juntas para dar ao mundo um produto realmente revolucionário cujo objetivo principal não era a extração de dados para espionar os usuários ou para transformá-los em fornecedores de matéria prima para os lucrativos negócios criados pelos empresários que mineram dados brutos.

No princípio cada uma das empresas se comprometeu a desenvolver sozinha o produto segundo as especificações da ONU sob inspiração de um diplomata de Angola. Todavia, ficou difícil resolver um impasse essencial. Por causa do escândalo revelado ao mundo por Snowden, os chineses se recusavam a utilizar um app feito exclusivamente por engenheiros de software americanos. Por outro lado, os americanos se recusavam a autorizar o funcionamento de um app feito na China acreditando que os chineses poderiam espionar os americanos.

Esse impasse foi resolvido quando o representante de uma pequena ilha do Pacífico teve uma ideia genial. As duas empresas desenvolveriam o app ou a Inteligência Artificial que realizaria traduções simultâneas em direções opostas, porque assim os engenheiros do Google e da Huwaei poderiam vigiar uns aos outros. Para impedir o uso indevido dos dados dos usuários, todos os dados gerados pelo uso do app seria gravado apenas nos telefones de cada usuário.

Engenheiros chineses, alemães, franceses, japoneses e americanos comissionados pela ONU poderiam, com uma certa regularidade, se reunir para  coletar amostras de conversas de maneira aleatória. Assim eles teriam condições de verificar o desenvolvimento das habilidades de tradução do app ou da Inteligência Artificial e/ou corrigir problemas que eventualmente tivessem sido detectados ou notificados pelos usuários.

Marx disse que no sistema socialista a política seria substituída pela administração das coisas. Desde que as coisas mais importantes se tornaram os dados, os socialistas apoiaram significativamente os esforços da ONU. Eles acreditavam que administração comum dos dados seria um novo degrau para a revolução social. É evidente que o app foi acusado de comunista pelos apoiadores de Trump, Bolsonaro, Salvini, etc, mas eles acabaram ficando falando sozinho no momento em que os empresários começaram a perceber que a comunicação direta com tradução simultânea em duas direções era excelente para os negócios.

A plataforma criada pela ONU não se destinava exclusivamente aos negócios, mas não proibia que eles fossem realizados. Isso era bom. Algumas vezes conversas desinteressadas sobre literatura, filosofia, sociologia e história podem degenerar em comércio. O fato de ser impossível acrescentar propaganda segmentada às conversações era muito apreciada pelos usuários que não se interessavam muito por ser importunados o tempo todo com anúncios publicitários.

“Uma Inteligência Artificial que mudou realmente o mundo e aproximou as pessoas de culturas diferentes.” Essa foi a frase escolhida para ilustrar a estátua construída na sede da ONU em homenagem ao app quando ele fez 10 anos de funcionamento.

O sucesso do app desenvolvido para a ONU por engenheiros da Google e Huwaei fez um grande sucesso desde que começou a funcionar. Cinco anos depois de seu lançamento a esmagadora maioria das pessoas que tinham Smartphone ou computador utilizavam-no.

Foi mais ou menos nessa época que uma revista inglesa deu certo destaque para uma observação de um estudioso brasileiro. As facilidades criadas pelo app da ONU estavam provocando um declínio no estudo e no ensino de línguas. Uma tragédia anunciada estava em curso. No dia que o app deixasse de funcionar as pessoas que usam línguas diferentes simplesmente não conseguiriam mais conversar umas com as outras.

No princípio ninguém deu atenção àquele alerta. A comunidade internacional somente começou a se preocupar quando os donos de escolas de línguas começaram a pressionar seus governos. O app da ONU estava destruindo os negócios deles e isso não deveria ser permitido. Alguns países ameaçaram revogar a licença para o app funcionar em seu território. Outros acusaram a ONU de estar provocando um verdadeiro genocídio artístico, pois a venerável arte da tradução literária estava em perigo.

Esse problema político foi superado da maneira como geralmente todos os outros são solucionados pelos governos: os donos de escolas receberam descontos de impostos e indenizações compensatórias pelos prejuízos que comprovadamente tivessem sofrido. Eles puderam mudar de ramo ou simplesmente gastar o que receberam. Os tradutores literários eram politicamente invisíveis e continuaram assim.

Quando os usuários começaram a compartilhar livros no app, os editores começaram a gritar. Mas eles não foram ouvidos. A ONU tinha metas e o futuro não poderia ser detido por causa daqueles que insistiam em explorar ramos econômicos condenados à extinção. Todavia, os burocratas internacionais foram obrigados a prestar atenção aos relatórios e avisos dos engenheiros do Google e da Huwaei.

O aumento exponencial do fluxo de tráfico de dados com tradução simultânea multidirecional estava começando a provocar falhas no app. A qualidade das traduções estava começando a declinar. Falhas na segmentação e recuperação de pacotes de informação estava distribuindo frases e textos inteiros de maneira aleatória provocando frustração e raiva entre os usuários. Uma pesquisa comprovou que a aprovação do app da ONU estava em declínio, então os diplomatas aceitaram a imposição de limites à quantidade de informação que poderia ser compartilhada e simultaneamente traduzida.

“O app da ONU está virando um Twitter chique?”

Esse foi o título da longa matéria de uma revista especializada.

Todavia, após entrevistar pessoas que haviam recebido mensagens trocadas, os jornalistas chegaram à conclusão de que os limites impostos pela ONU eram necessários. Além disso, era possível escrever muita coisa com 10 mil caracteres de espaço a cada mensagem a receber tradução simultânea. A impossibilidade de “copiar e colar” mensagens para dentro do app da ONU também ajudaria muito a diminuir o tráfego de dados, o tráfico de textos e os problemas técnicos resultantes.

Depois que receberam um pacote de medidas semelhantes às que haviam sido concedidas aos donos de escolas de línguas, os editores ficaram em silêncio. E ninguém percebeu o ovo fecundado da serpente.

Pouco depois que o app da ONU completou 20 anos, com uma pomposa cerimônia transmitida ao vivo para o mundo inteiro, o conflito entre a China e os EUA por causa das últimas reservas de petróleo despedaçou totalmente o mundo. As duas potências agora abertamente inimigas se retiraram da ONU causando ondas de choque que reverberaram pelo planeta. Ofensas começaram a ser trocadas através do aplicativo da ONU.

Alianças internacionais foram rompidas. Pactos militares de mútua assistência foram assinados. Os militares dos dois países prestes a entrar em guerra foram colocados de prontidão. Centenas de milhões de jovens foram mobilizados em armas, muitos mais foram conscritos.

A parceria Googoe-Huwaei foi desfeita. Um país após o outro começou a proibir o funcionamento do app da ONU em seu território. Desmonetizada, a própria ONU foi obrigada a fechar as portas. Ninguém sabeia exatamente o que iria ocorrer com a imensa infraestrutura internacional tecnológica criada para instrumentalizar o funcionamento do app.

A guerra era iminente. Em estado total de alerta, exércitos poderosos estão prestes a colidir. Com exceção de uma pequena elite de diplomatas e oficiais de elevada patente, ninguém é capaz de utilizar outra língua além daquela que aprendeu em seu país. Uma vez mais aquilo que deveria ter unido os povos acabou provocando uma brutal separação entre eles.

Ironicamente, até mesmo fazer a guerra havia se tornado um problema.

A carência de tradutores competentes no campo de batalha dificultava a obtenção de inteligência.

Operações militares de envergadura acabavam dando em nada porque oficiais subalternos aliados de países diferentes não conseguirem entender uns os outros no campo de batalha. Batalhões ficavam perdidos em virtude de não conseguirem  se orientar no país invadido. Prisioneiros de guerra que tinham informações essencial deixavam de ser interrogados porque ninguém mais falava outra língua com proficiência. A guerra total foi um fracasso total.

Após imensas perdas de material humano e desperdício de material bélico, os dois campos decidiram um cessar fogo. No dia em que o armistício foi assinado, um idoso diplomata belga ligou para seu colega em Angola.

– Eu gostaria muito de pedir desculpas a você. Durante vários anos eu tentei sabotar seu projeto acreditando que sua ideia era perigosa. Hoje eu fiquei convencido de que o perigo maior para o mundo é deixar esses soldados maníacos terem acesso à uma quantidade imensa de tradutores bem treinados. Nós precisamos reunir a velha guarda da diplomacia para recolocar seu app em funcionamento de alguma maneira. Você salvou o mundo, meu velho.

O angolano desligou o telefone sem dizer absolutamente nada. Há algum tempo ele começara a apresentar sintomas de alzheimer.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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