O irmãozinho, por Rômulo Moreira

Perdia coisas. Quebrava outras. Esqueci-as. Como era inteligente sempre tinha uma explicação. Fajutice pura, aquele pilantra!

O irmãozinho

por Rômulo Moreira

Meu irmãozinho era o mais novo dos filhos do meu pai. Certamente por isso ele fazia de conta que gostava mais do meu irmãozinho do que de mim e do meu irmão mais velho. Meu pai exultou!

Lembro-me bem que ele emoldurou uma adaptação de uma canção de Caetano Veloso e apôs na porta do quarto do hospital, bem à vista.

A versão dele dizia assim:

Sua mãe e eu, seus irmãos e eu.
E os irmãos da sua mãe.
Minha mãe e eu, minha irmã e eu e os pais da sua mãe, e a irmã da sua mãe,
Damos-lhes as boas-vindas, boas-vindas, boas-vindas…
Venha conhecer a vida.
Eu digo que ela é gostosa: tem o sol e tem a lua, tem o medo e tem a rosa.
Eu digo que ela é gostosa: tem a noite e tem o dia, a poesia e tem a prosa.
Eu digo que ela é gostosa: tem a morte e tem o amor, e tem o mote e tem a glosa.
Eu digo que ela é gostosa…

No fundo meu pai sabia que a vida não tinha nada de gostosa. Ele estava mesmo era iludindo o meu irmãozinho, a mãe do meu irmãozinho, o meu irmão mais velho do que eu, e a mim mesma. Só mais tarde fui me dar conta.

No tempo em que meu irmãozinho era muito pequeno, muito mesmo, meu pai era só chamego com ele. Era um chamego só. Que coisa mais chata! Bem, quando eu era muito menininha, como meu irmãozinho, eu também era muito chamegada com ele. O que me deixava com ciúmes, a mim e a toda a gente, era o chamego bem especial dos dois, o meu pai com o meu irmãozinho. Isso durou anos.

Quando ele já era um adolescente e eu já era uma mulher e o meu irmão já era um homem, meu pai e ele ainda teimavam em ter uma cumplicidade infantil e invejável. Era um acarinhando o outro. Tinham uma intimidade que eu não admitia. Ficavam de mãos dadas. Ele beijava-lhe a face, desavergonhadamente. E, sobretudo, não rascava com ele, muito raramente.

Mas o cafajeste do menorzinho bem que merecia umas sovas, de quando em vez, como as que eu, e o meu irmão mais velho, tomamos, muito raramente também.

O menorzinho era muito engraçado, como o meu pai. Ele gostaria de ser socialista, mas era difícil. Meu pai esforçava-se para lhe explicar que a igualdade entre nós era possível. Até para Havana meu pai o levou uma certa vez. Mais tarde eu conto a viagem.

No peito do meu lindinho batia um coração socialista. Na cabeça, era difícil para ele. Ele era um lindo. Um lindo engraçado. E era meio atrapalhado o que o tornava mais engraçado ainda. Perdia coisas. Quebrava outras. Esqueci-as. Como era inteligente sempre tinha uma explicação. Fajutice pura, aquele pilantra!

Uma vez meu pai, plagiando descaradamente Chico Buarque, escreveu isso para este meu irmão caçula:

Olha o menino, o menino, pra onde é que ele vai, se já sai sozinho…
As notas da minha canção.
Vai meu menino levando destinos tão iluminados de sim.
Passam por mim e embaraçam as linhas da minha mão.
O menino é lindo e só meu, na minha ilusão.
E na canção cristalina da mina da imaginação.
Pode o tempo marcar seus caminhos nas faces, com as linhas, das noites de não.
E a solidão maltratar o meu menino.
O meu não! O meu menino é meu. Só meu. Do meu coração.
Eu te amo meu menino pequeno.
 O resto é o porvir!

Ele cresceu muito lindo. Mais lindo para o meu pai. Quando ele estava gordinho, uma baleia!, meu pai dizia, cínico!, que ele estava forte. Nós o amávamos. E o meu pai também era cínico. Nós não éramos seis, mas éramos cinco.

Depois ele cresceu ainda mais, e não ficou mais um gorducho. Ficou forte de verdade. Um forte meio desengonçado. Lutava boxe e jiu-jitsu. Mas não era um brigão, muito ao contrário.

E ele entrou na faculdade de Direito. Ninguém acreditava nesta possibilidade, posto preguiçoso ele era. Queria, na verdade, fazer história, mas não deu…

Nada obstante as idades, ou talvez em razão delas, continuaram ainda mais cúmplices. Conversavam sobre (quase) tudo. Contou a meu pai, por exemplo, quando fumou maconha. Foi engraçado. Ele estava nervoso. Queria lhe falar algo. Foram ao gabinete do meu pai. Meu velho pai, com um coração de meio século já, estava ansioso por saber do que se tratava. Receava algo realmente sério.

– “Eu fumo maconha”, disse ele, circunspecto.

– “É melhor que saiba por mim que pelos outros”, completou.

– “Puta que pariu! Pensei que era algo grave. Porra!”, foi a resposta do meu pai.

Meu irmão riu, e gostou. Meu pai era um louco, pensou…

Droga nunca foi um problema sério em nossa família, salvo a lícita.

Uma certa vez, logo no início da faculdade, meu pai ficou muito triste com ele (próprio), não com ele (meu irmão). Ele tinha ido para três finais, em três disciplinas do curso. E mentiu… disse-lhe que precisava apenas fazer uma prova final, de apenas uma matéria. Fê-lo, certamente, por vergonha. Meu pai ensinava na mesma faculdade. Era amigo dos professores. É uma tarefa árdua ser aluno de amigo do pai. Eu mesma passei por essa experiência. É desconfortante.

E ele seguiu…

Uma vez ele pediu para o meu pai levá-lo à Cuba. Ele e o meu pai. Era um tempo de carnaval. Meu pai achou ótimo. Meu caçula só não esperava que minha mãe não quisesse passar esse tempo de festejo sozinha, posto que eu estaria na Itália e meu irmão estudando Medicina no Rio. Minha mãe era linda e esperta. Foram os três, então.

Naquela época havia um surto de febre amarela no Brasil e tiveram eles, meu pai e meu irmãozinho, que tomar vacina para que pudessem entrar na Ilha de Fidel. Minha mãe não podia vacinar-se em razão da doença filha da puta e escrota.

Meu pai gostava de Fidel. Ele gostava também, e acho que mais, de Che. Quando falavam de Cuba (mal), ele, desconcertadamente, falava bem. Meu pai gostava da Revolução! Ele gostava de revolução. Ele simpatizava com o Anarquismo. No fundo ele era um anarquista.

Uma certa vez um amigo dele escreveu uma pequena crônica – “O Milagre da Liberdade” -, narrando um fato ocorrido há muitos anos, logo depois que ele se graduara em Direito e começara a advogar na área criminal.

Ele contava que conseguira libertar um jovem acusado injustamente de tráfico de drogas – quando se tratava apenas de um usuário.

Óbvio que todos entenderam o uso da palavra milagre nos termos em que havia sido escrita, e qual o significado que ele – o amigo do meu pai – havia lhe querido dar. Como se fosse uma metáfora, digamos assim.

Mas, disse-me meu pai, após ler o que houvera escrito o seu amigo:

“A liberdade, definitivamente, não é um milagre. Eu não acredito em milagres, nem metaforicamente. Eu acredito, sim!, na vida em liberdade, em todos os sentidos: liberdade de pensar, de existir e de viver como se quer, de amar – ou não amar, de escrever. No sentido anarquista mesmo: libertarismo e libertário. O limite só pode ser o outro. Sem isso não se opera – para quem acredita – o ´milagre` da vida.”

Eu achava estranho, posto ele ser um libertário!, quase um libertino, eu diria. Viva Fidel! Viva Che! Ele, então, mais uma vez, cantava uma canção de Caetano Veloso. Assim…

Mamãe eu quero ir a Cuba
Quero ver a vida lá
La sueño una perla encendida
Sobre la mar
Mamãe eu quero amar
A ilha de xangô e de yemanjá
Yorubá igual a Bahia
Desde Célia Cruz
Cuando eu era un niño de Jesus
E a revolução
Que também tocou meu coração
Cuba seja aqui
Essa ouvi dos lábios de peti
Desde o cha-cha-cha
Mamãe eu quero ir a Cuba
E quero voltar

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS

Redação

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