Antonio Helio Junqueira
Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.
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O pastel Martha Rocha:  memórias, homenagens, afetos, por Antonio Hélio Junqueira

Para ela, em toda sua majestade, só posso prestar essa muito singela lembrança e homenagem, o que faço com o mais profundo respeito e já uma pontinha de saudade.

O pastel Martha Rocha:  memórias, homenagens, afetos

por Antonio Hélio Junqueira[1]

Tenho a mais solene e empedernida implicância com premonições, vidências, vaticínios e profecias. Não gosto delas e não fico confortável com elas. Sinto assim como se elas quisessem nos fazer crer em destinos inexoráveis e que o nosso tal de livre arbítrio não passasse, afinal, de mera zombaria cósmica.  Embora – frente às múltiplas pandemias biológicas, deseducativas e anticulturais que deram para nos assolar –, falar em livre arbítrio exija certa e boa dose de boa vontade, prefiro continuar crendo que seguimos donos de nossos narizes e futuros.

Para minha grande infelicidade, porém, sou dado a sofrer das tais visitas das intuições visionárias, de certos tipos de farejamento de porvires e de previsões que não foram convidadas, e que são muito menos bem-vindas. Pois bem, meu mais recente acometimento nesse sentido se deu justamente com a Martha Rocha.

Há dias, dei de falar de Martha Rocha. Martha Rocha pra cá, Martha Rocha pra lá. A princípio, fiquei convicto de que se tratava apenas da emergência de uma memória afetiva em relação a um certo tipo de pastel que habitou minha meninice interiorana. Sim, seguro que era isso, pois que ando devaneando sobre lembranças de comidas e de estórias de quintais e de cozinhas.  Pois qual não foi o susto que levei ao ler a notícia, na tarde desse triste sábado, 4 de julho, da morte de nossa queridíssima e já saudosa Martha Rocha, a eterna miss do Brasil.

O Brasil tem dessas coisas. Já teve sua namoradinha, que afinal desandou em não deu mais em nada, só mesmo em vexame grosso. Mas teve, também, a sua miss, essa, sim, de elevada estirpe, sem negar fogo e de dar orgulho de verdade na gente.

Martha Rocha foi mulher de grande beleza e formosura. Nasceu em Salvador, foi modelo e acabou eleita, aos 18 anos, Miss Brasil. O ano era o de 1954, época que o País sonhava com o progresso sem limites, mas que aos trancos e barrancos, deu no que deu, como já muito bem disse o antropólogo e político brasileiro, Darcy Ribeiro[2].

Nossa miss quase chegou ao disputadíssimo título de Miss Universo. Não deu. Ficou em segundo lugar. Perdeu para a norte-americana Miriam Stevenson. O motivo: duas polegadas a mais de quadril, ou no velho e bom português, de bumbum mesmo. Duas miserabilíssimas polegadas!!! Eu ainda sequer tinha nascido na época do ocorrido, mas juro que perdi a conta das vezes que ouvi falar e repisar, durante toda a minha infância, das ditas e malditas duas polegadas da Martha Rocha. Eu mesmo demorei muito para entender o que queriam dizer as tais das polegadas. Era muito abstrato para mim, até porque demorou muito para ter televisão em minha casa e, aí sim, televisão se media em polegadas: tantas polegadas assim, tantas polegadas, assado. Quanto mais polegadas, mais prestígio tinha a família…Nada de centímetros, que isso era coisa de gente sem cultura, sem informação, sem eira nem beira. Polegada! Isso sim!

O 1954 foi um ano de fato trágico para o País e não só por causa da desclassificação da Martha Rocha. Foi, também, o ano do suicídio do Getúlio Vargas, que decidiu assim sair de vez da vida para entrar na História. Mas ainda não foi só, que desgraça pouca é bobagem: o projeto do Parque Ibirapuera, de Oscar Niemeyer, foi reduzido à metade da sua beleza pela ganância de seus construtores e pela obtusidade da então nomeada Comissão do Quarto Centenário de São Paulo.

Mas, não importa! Mesmo assim Martha Rocha, em sua lindeza, virou modelo de carro (com duas polegadas a mais na distância entre seus eixos, é sempre bom lembrar), nome e receita de bolo. Não de um bolo trivial qualquer. Bolo de pão de ló, para festas e celebrações, com várias camadas de recheio e cobertura de chantilly e fios de ovos. As duas polegadas a mais do bolo são garantidas por um insuspeito disco de merengues, entre as múltiplas camadas, que faz com que a guloseima se sobressaia frente à reles concorrência. Dizem que os fios de ovos são até hoje uma homenagem aos cabelos loiros e cacheados da baiana.

Na minha cidade, na minha casa e na minha infância, contudo, Martha Rocha não foi tipo de carro, nem modelo de bolo: Martha Rocha foi nome soberano, de rainha que ela era, na categoria gastronômica dos pastéis de mercado. O pastel Martha Rocha frequentou muitos dos meus sonhos de garoto e até hoje ainda me inspira certas lembranças de primeira grandeza.

O pastel Martha Rocha, a bem da verdade, não tinha nada demais. Nada demais, a não ser, é óbvio, as tais ditas polegadas: o pastel era grande, bem acima da média. E isso era um verdadeiro delírio!

Pastelarias de feiras, mercados e rodoviárias sempre povoaram sonhos. Quase sempre em mãos nipônicas, vêm proporcionando, de geração em geração, devaneios e até hoje evocam memórias de delícias. Hoje em dia, contudo, os pastéis grandões não são mais nenhuma novidade e até participam de concursos de sabor e tamanho. Tem de 18, 20, 22 cm e até mais (acreditem!), ainda que no senso comum se afirme, de pé junto, que tais exatas dimensões não são, nunca foram e nunca serão nenhuma espécie de documento. O prazer da degustação do pastel sempre será o mesmo.  De qualquer forma, há que se deixar registrado, que as medidas dos quitutes atuais são tomadas e propagandeadas em centímetros, veja bem: centímetros!

Nada que se compare, pois, ao charme das antigas polegadas do Brasil modernista e inzoneiro.

Na minha meninice, os pastéis Martha Rocha eram visitas relativamente frequentes em nossas mesas de almoço ou de jantar. Não eram deleites avulsos. Eram “mistura”, para comer com arroz e feijão e aumentar a sustança da refeição. Eles “aconteciam” quando a minha vó materna, Iriné, se enredava em suas múltiplas funções domésticas, se perdia nelas e acabava atrasando as lides da cozinha. Sem mistura pronta, a saída era correr na pastelaria do mercado municipal e arrebanhar o lote das fumegantes gostosuras. Isso era um sonho! E a gente adorava quando a vó não dava conta do recado!

Coitada! Minha avó era bem aquilo que a moçada de hoje em dia chama de pessoa “multitasking”: limpava, lavava, passava, costurava, remendava, cozinhava e assim ia… Na verdade, ela gostava mesmo era de costurar e, acho que meio que propositadamente, as coisas da cozinha capengavam…Ela decididamente, apesar de fazer alguns quitutes e delícias como ninguém, não gostava de fato do forno e fogão. Sobrava para a Martha Rocha!

O pastel Martha Rocha era incrivelmente grande. Um só para cada um! Seu recheio era dos mais tradicionais: carne moída com cebola, cheiro verde, pedacinhos de ovo cozido e azeitonas, com as quais nem sempre éramos irmãmente premiados. Tinha disputa nisso! A depender do dia, ou do humor, ou do caixa de suprimento do japonês da pastelaria, os pastéis vinham menos recheados do que o esperado. Meu avô os chamava então de “pastéis de vento” e, ao comê-los, corríamos o risco de pegar um resfriado. Pura intriga, que, de verdade, ninguém nunca ficou doente por causa de vento de pastel.

Não sendo o resfriado, o consumo do pastel envolvia, porém, outros riscos. O maior deles era a queimadura dos beiços. A iguaria chegava em casa acondicionada naqueles saquinhos de papel pardos cujas manchas da gordura extravasada assanhava toda a lombrigada. Vinham pelando! Tinha que morder só a pontinha de um dos cantos, soprar e deixar sair o vapor…. Quem tinha que usar óculos precisava tomar cuidados redobrados. O vapor fumarento embaçava tudo e numa bobeada se podia perder nacos irrecuperáveis da iguaria. Mas, como ninguém tinha essa paciência toda de espera, a ferveção de bocas e línguas era constante. E doía, mesmo! Dor prolongada, a reclamar medicação. Outro risco era de natureza mais voluntária e incluía escolhas entre os molhos de pimentas domésticos de diferentes graus de perversidade. Tinha de dedo de moça, de pimenta amarela, de cheiro, malagueta e de diferentes “blends”. Eu, que nunca me atrevi muito nessa área, me contentava com as caipiríssimas e brasileiríssimas cumaris, curtidas ainda verdes e uma de minhas mais arraigadas paixões pimentíferas.

Já maduro, encontrei uma e única vez com nossa mais que adorável Martha Rocha. Foi no Solar do Unhão, em Salvador, onde eu tinha ido saborear um dos mais incríveis jantares que já tive: uma moqueca de peixe servida no deck, com lua cheia de plantão sobre o mar em noite de brisa constante e morna. Pois, então, Martha Rocha além de sua marcante presença cultural será para mim sempre lembrança de uma mesa saborosa, afetiva e mestiça, que só esse Brasil é capaz de proporcionar.

Para ela, em toda sua majestade, só posso prestar essa muito singela lembrança e homenagem, o que faço com o mais profundo respeito e já uma pontinha de saudade. Gosto do fato de a gente ter uma miss do Brasil que nos representa, uma miss de beleza, charme, elegância e uma certa e bem-vinda caipirice que ela própria reconhecia. Gosto especialmente de ela ter sido um tapa na cara com luva de pelica na gringada metida a besta em impor padrões disso, padrões daquilo. Gosto que ela representou antes da maioria, nossa diversidade e a capacidade de nossa inclusão global em toda nossa particularíssima abundância. O que não gosto nada nada é de o Brasil ter tido sua namoradinha, tão bonitinha, mas tão ordinária!

[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.

[2] RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1985

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

1 Comentário

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  1. E como não se fez alarde do falecimento da mais bela miss brasileira, cujo rosto muitos nem conheceram?
    E morreu pobre, num lar de idosos.
    As duas polegadas? Uma lenda. Ela não foi medida.
    Enfim, num breve tempo, o brasil descobre que a sua namoradinha era ordinária e deixa morrer anônima uma grande representante de sua beleza.
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Martha_Rocha

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