Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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O poeta e o diálogo com o tempo III, por Maíra Vasconcelos

Pensar sobre o próprio tempo pode ser também colocar-se literalmente neste entre-tempo, neste ir e vir permanentes. Isso é situação possível na vida de poetas e escritores.

Kandinsky

O poeta e o diálogo com o tempo III, por Maíra Vasconcelos

Retornar a determinado espaço de tempo já transcorrido, pode acontecer quando se busca colocar os pés e o corpo inteiro no mesmo lugar físico onde se esteve há dez ou vinte anos. O encontro com o que agora são ruínas, talvez seja algo comum no trabalho diário com a palavra escrita. As poeiras do tempo são constantemente vistas e revistas, visitadas ou revisitadas, mesmo considerando-se a dificuldade que implica segurar poeiras com as próprias mãos e tentar criar molduras onde tais passados possam caber, sempre depois de transformados.

Pensar sobre o próprio tempo pode ser também colocar-se literalmente neste entre-tempo, neste ir e vir permanentes. Isso é situação possível na vida de poetas e escritores. Quem assim não entenderá a obsessão de Andréi Tarkovski, o cineasta poeta, pelo tempo. O compromisso de Tarkovski com a poesia no cinema, talvez, seja o mesmo que seu compromisso em expressar e trabalhar o tempo. Muitas vezes, a partir do tempo de suas próprias vivências, como em O Espelho. Ou trazendo de volta os versos de seu pai poeta, Arseni Tarkovsky.

Ainda que o tempo não seja o mesmo, obviamente, mas é tamanha a proximidade alcançada com as lembranças, ao se pensar, buscar e transformar o tempo-passado quase presente, que isso irá superar qualquer vivência comum com o tempo. Não será permitido a poetas e escritores estarem dispostos apenas como espectadores ou sujeitos de memória. Diante da necessidade de criar, re-formar, expressar e se comunicar reunindo fragmentos soltos do tempo que já não lhes pertence, que nunca lhes pertenceu no sentido de se ter domínio sobre, mas com o qual possuem um diálogo único e original. Sempre e quando, a partir dos restos-e-poeiras de seus próprios tempos.

A criação se faz cada vez mais, e precisamente autêntica, quando se parte do ponto de vista atemporal dos próprios passos, recuperando e renovando espaços íntimos que já não existem, ou voltando fisicamente a lugares que pertencem ao tempo-passado. Para filmar O espelho, Tarkovski voltou à casa de sua infância, que é onde se passa boa parte do filme. Também nesse jogo do tempo, trabalha recortes para falar dos períodos pré e pós-guerra. Quem conseguirá assistir O Espelho uma única vez e juntar rapidamente todos os retalhos? Não sei se O Espelho foi feito para se dizer que terminamos de assistir, quando a relação do filme é com o tempo solúvel e assim in-terminável.

É possível pensar o próprio tempo e criar a partir desses retalhos, únicos e desconhecidos a qualquer outro, e de certa forma até a si mesmo, quando a vida é tomada pelo ofício da palavra escrita. Mais ainda se é uma escrita poética, acredito. Sem nunca deixar de dar as mãos ao tempo, pois apenas dissecando e observando seu transcurso, seu ir e vir, assim, poetas e escritores, e todos os que trabalham com a arte, não cultivarão ilusões superficiais com o passar dos anos. Mas terão o desejo da criação a partir da mais sólida desavença e respeito com o tempo posto, real, como diria Tarkovski, com o tempo ‘vivo’.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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