Olhos amarelo-esverdeados e o Àṣẹ que há em mim, por Mariana Nassif

Olhos amarelo-esverdeados e o Àṣẹ que há em mim

por Mariana Nassif

Quem me conhece sabe que a cor dos meus olhos muda especialmente quando fico brava, mas tão brava, num estado de fúria tão profundo que ou vou explodir em tufão ou, acredite, sou capaz de emudecer e deixar o apocalipse acontecer internamente. Neste caso, é capaz que caia doente nos dias que seguem, mas não é o caso de contar sobre o quão somática é minha expressão.

Este post é pra falar sobre o incrivelmente mágico processo de introspecção e potência que vem sendo oportunado desde que acolhi minha iniciação no Candomblé.  Para o Babalorixá Sidney Nogueira,  “nós, das CTTro – Comunidades Tradicionais de Terreiro – , acreditamos e vivemos do e para o Àṣẹ. Àṣẹ é força vital, é manutenção da vida alinhada com o criador, é força realizadora e força criada para uma vida saudável, em “equilíbrio” – aqui a palavra não assume a semântica de um só padrão de equilíbrio e um só modo de vida aceitável socialmente como o tomamos no ocidente.”

Vale muito observar a questão do não assumir a semântica de um só padrão de equilíbrio e um só modo de vida aceitável socialmente e, se possível, se aprofundar um tanto na reflexão importante que esta abertura traz. O texto continua, é claro, citando alguns exemplos que atuam, de forma positiva e negativa, sobre essa força maravilhosa que é o Àṣẹ:

“É o Àṣẹ que emana da natureza, da nossa ancestralidade, do criador e que mantém a vida e tudo em movimento. Movimento é Àṣẹ. Àṣẹ é circular. Nesse sentido, há também a produção de Contra-Àṣẹ. Contra-Àṣẹ é tudo que rompe com a circularidade, fluidez e manutenção do Àṣẹ. É preciso que cuidemos do Àṣẹ que nos habita. Que observemos atentamente a necessidade de reposição de Àṣẹ. Há rituais para isso. Os saberes ancestrais cuidam disso. Às vezes, deixamos que levem o nosso Àṣẹ; às vezes, nós mesmos o desperdiçamos; às vezes, impedimos sua fluidez. Àṣẹ é amor. Tudo que for contra o amor seja pelo outro ou seja contra o amor-próprio é contra-Àṣẹ. A má palavra é contra – Àṣẹ. O medo é contra-Àṣẹ. A violência é contra-Àṣẹ. Alinhar-se a pessoas sem Àṣẹ é contra-Àṣẹ. Ideias fixas são contra-Àṣẹ. Desejar o que é do outro é contra-Àṣẹ. Buscar a doença é contra – Àṣẹ. Desistir da vida e de si mesmo é contra-Àṣẹ. A mentira é contra-Àṣẹ. Acreditar na mentira – sabendo-a mentira, é contra-Àṣẹ. Desonrar a própria ancestralidade é contra – Àṣẹ. São muitos os comportamentos que atraem uma força antagônica ao Àṣẹ. Observemos. Cuidemo-nos. Tenhamos coragem e força para produzir Àṣẹ. Que não nos falte Àṣẹ. Àṣẹ!”

Sem certeza sobre o que estou escrevendo, compartilhando apenas as sensações de uma iniciada há cerca de um mês, novinha que só, digo que este período de preceito tem alto grau de provocação. Uma provocação interna, muito mais do que externa, olha só, que traz questões ligadas à religiosidade que escolhi como minha e a cultura enraizada católica, a da culpa e, ufa, foi esta a batalha que hoje promoveu meus olhos àquela cor linda, mas que significa que está mais do que na hora de parar, pro meu próprio bem.

Ando questionando a qualidade de algumas coisas essenciais, sejam estas relações com pessoas ou lugares e, em algum outro momento, me colocava como “nossa, não estou suficientemente espiritualizada porque quero resolver isso logo e quero agir em meu benefício próprio, ai, como eu sou má pessoa, fulano de tal está passando por problemas e eu nem pra entender; a situação tal está se moldando dessa forma, vai ver é pra eu aprender a aguentar”.

Olha, tudo bem, muito tudo bem mesmo: eu entendo empatia, simpatia e tenho tentado exercitar paciência, juro mesmo, aprendi a me calar em prol do que desejo como objetivo e sigo sabendo que esta é uma prática que precisarei manter comigo porque funciona e me faz bem, mas aiaiaiaiai, andava com uma placa escrito trouxa na testa. Luminosa, pink, quem sabe, bem charmosa porque né, sou eu, mas ainda assim uma placa que permitia que eu seguisse por este caminho do olhar muito o outro, o externo e, claro, esgotada, explodir – com os olhos amarelo-esverdeados e o corpo em dores manifestadas pela alma, como que dissesse que já passamos por aquilo antes como é que não fui perceber? Melhor formulando: como é que eu dei essa chave na mão de fulano e beltrano pra sambar na minha cara, agora não adianta ficar brava-tá-na-cara-nos-olhos-no-corpo-todo.

Hoje, mesmo novinha, mesmo recém chegada à área VIP da espiritualidade, porque Orixá, meu amor, não é pra qualquer um não: tem que ter um compromisso tão grande consigo mesmo porque a gente é a casa do Orixá, ele não é algo externo, uma entidade a quem podemos culpar e responsabilizar, como bem disse meu amô de Xangô, aquele que me trouxe pra cá – bem, mesmo tendo recém chegado à esta festa, eu entendo que preciso, preciso mesmo, me priorizar. Olhar pro meu desejo, legitima-lo, sentir alegria e força para realizar o que preciso para chegar onde quero, levando a definição de Àṣẹ comigo, por onde for, pras mais variadas situações.

Desejar ter um bom relacionamento amoroso, com alguém que me faça mais feliz do que batalhar por uma relação: é agir em prol da manutenção positiva do Àṣẹ. Desejar que meu trabalho tenha o devido valor, mesmo que questionado “ai, tá caro”, porque eu sei o custo de cada etapa, de cada matéria- prima, do meu tempo: é agir em prol da manutenção positiva do Àṣẹ. Eliminar amizades que sugam minha energia em prol de vaidades exclusivas, sem troca alguma, nem aquela risada no final da noite: é agir em prol da manutenção positiva do Àṣẹ. Procurar uma morada física que empate em alegria e leveza com a morada forte que hoje há no coração: é agir em prol da manutenção positiva do Àṣẹ. Cultivar relações mais livres, permeadas pelo gostar, pela confiança e pelas verdades, estas que incluem algumas decepções sim, porque a perfeição é a pior mentira que a gente pode apresentar e exigir do outro: é agir em prol da manutenção positiva do Àṣẹ.

Reler esse texto sempre que a dúvida católica de culpa e penitência bater por aqui: é agir em prol da manutenção positiva do Àṣẹ, que, no meu caso específico, oportuna a descoberta de uma nova função pros olhos amarelo-esverdeados, sinal meu de que os limites, muitos deles, foram ultrapassados – e isso nada mais é do que o contrário do que venho desejando, com força e cada vez mais, que é aprender e executar, em tudo, adivinha o quê? Isso, isso mesmo: a manutenção positiva do Àṣẹ.

 

Mariana A. Nassif

3 Comentários

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  1. Desejar…
    O desejo é uma

    Desejar…

    O desejo é uma prisão, menina. 

    A mais terrível de todas, pois o desejo desloca a felicidade da pessoa para a esfera de ação do “outro”. 

    O outro (ou outra), no entanto, também tem é capaz de desejar.

    E quando os desejos não se encontram a infelicidade de um deles (ou de ambos) é inevitável.

    A única maneira de contornar o desencontro é desejar com ironia, desejar assim, assim… como quem não deseja, entende?

    Pois quando uma ironia cola em outra o desencontro é uma impossibilidade semântica, quântica, xamânica e tântrica.

  2. adoro o textos dessa moça…

    muitos : é…

    mas o que vem antes é muitas vezes muito mais bonito do que vem depois

    como neste trecho

    ” procurar uma morada física que empate em alegria e leveza com a morada forte que hoje há no coração “

    cara, isso é muito bonito

    tão bonito que chega a esgotar a beleza de tudo que vem depois, ou seja,

    nem precisa dizer o que é por já ser tão belo…………………………

    espiritualmente é uma forma de se reconhecer como era antes e, com a iniciação, como sempre será

     

    o mais bonito de todo querer é se disponibilizar no Àse, inconscientemente, para que aconteça

    1. só quando os dois lados se disponibilizam…

      é que ocorre o encontro dos espíritos, o reconhecimento………………………………

      nos escritos escondidos, consta que deu-se assim com Jesus, poucos reconheceram como Ele era antes

      e Ele não mudou em momento algum da sua permanência

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