Onde as histórias se escondem, por Lúcio Verçoza

O velho Saúba olhou para a chama da fogueira e sorriu. Sua boca não tinha dentes, mas seu sorriso brilhava mais do que as brasas do juazeiro.

Foto Celso Brandão

Onde as histórias se escondem

por Lúcio Verçoza

Era Agreste. Distante do asfalto e sentados no batente da poeira.  A fogueira de juazeiro escovava o vento frio da madrugada. Do outro lado da cerca, jagunços armados nos vigiavam.

– São três da manhã, conte uma história, disse Albino.

O velho Saúba olhou para a chama da fogueira e sorriu. Sua boca não tinha dentes, mas seu sorriso brilhava mais do que as brasas do juazeiro.

– Pois bem… Dizem que as histórias perdidas não desaparecem. Elas ficam bem escondidas debaixo da linha do Equador, para que ninguém as perca. Quando eu era mais moço, minhas pernas eram do tamanho do mundo. Eu viajava acompanhando as revoadas das garças, ou o piado de um bacurau. Naquela época, eu não tinha medo do escuro, nem receio do que eu não conhecia. Quantas vezes escapei de picada de cobra e de ser mordido por cachorro? Eu alisava o cão mais bravo, sem saber que ele estava com raiva. Eu assobiava para a cobra mais venenosa, sem saber o que era veneno. Em qualquer canto eu dormia. O mundo era minha cama. O céu era o meu chapéu. Na aba do meu chapéu circulavam sonhos, sonhos como planetas girando na aba do meu chapéu. Naquela época os sonhos estavam na próxima estrada, na próxima paisagem, nos rostos que eu conhecia pelo caminho. Foi nessa época que cheguei à linha do Equador. Cheguei guiado por vagalumes. Eles iluminavam o que estava ali, bem debaixo da linha imaginária que separa o inseparável; bem debaixo da linha que divide o norte e o sul. Eram tantas histórias escondidas, tantas histórias guardadas, que ninguém sabe por onde começa ou termina. Quem vem de lá, diz que começa de um canto; quem vem daqui, diz que começa de outro. A questão é que nenhuma história perdida está realmente perdida. Sempre que vocês acharem que a história se perdeu, lembrem que ela está apenas escondida. Elas são como pessoas que dormem debaixo de um cobertor. Contar é uma forma de acordá-las.

Depois disso, o velho Saúba sorriu. Seu sorriso brilhava mais do que as estrelas.

Lúcio Verçoza – Sociólogo, professor universitário e organizador, em conjunto com Maria Aparecida de Moraes Silva, do livro “Vidas talhadas no avesso da história” (Annablume-Fapesp, 2018).

Redação

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