Para Burgos, por Zegomes

por Zegomes

Como Stephen Dedalus, certa ocasião resolvi partir. Sem saber por quê. Talvez buscar inspiração para meus textos. Aprender novas línguas, suporte para elaboração de textos bonitos e líricos.

Deixei tudo, como James Joyce. Fui. Para Alemanha.

Subi no avião no Rio e, por economia, desci em Madrid, para seguir de ônibus até meu destino. Um amigo me passou alguns contatos na cidade.

Mas, um imprevisto aconteceu. Ainda no avião, esse Stephen Dedalus tupi começou a ficar triste, chorar e se arrepender.

Era tarde.

Fui recebido pela parte amável de Espanha. E que amável! Creio que a parte amável de Espanha deve ser a mais amável das partes amáveis do mundo.

Levaram-me a passear por Madrid, e eu triste, todos os lindos monumentos e praças, o Prado, e eu triste, levaram-me ao El Corte Ingles, e eu tristíssimo.

Um de meus anfitriões era um ex-padre. Quando padre, trabalhara durante um ano no Brasil. Casara com uma ex-freira de Burgos e tinham um casal de crianças lindíssimas, aparentando ter entre sete e oito anos de idade.

Estava almoçando em sua casa. O ex-padre começou a cantarolar “Casinha Pequenina”. Conhecera uma pessoa no Brasil que tocava e cantava essa música divinamente.

Desabei de imediato. Senti um nó terrível na garganta. Emudeci. Lágrimas enuviaram meus olhos. Estava a ponto de um colapso.

Sua arguta mulher percebeu meu constrangimento e ordenou que parasse.

Para descontrair, ela então olhou para os lindos filhos e falou algo assim: contem para nosso convidado en donde vamos, en las vacaciones, a ver la abuelita.

Os dois lindos, bem sérios, em voz uníssona, mirando-me fixamente nos olhos, disseram: Para Burgos.

Os espanhóis chiam graciosamente quando pronunciam o “s” final das palavras. Para Burgossxx…

Tão graciosos foram em sua pronta resposta que o pai também repetiu a pergunta: nosso convidado não compreendeu para donde vamos en las vacaciones, a ver la abuelita.

E as vozes uníssonas, mirando-me fixamente, sérios, repetiram: Para Burgossxx.  

Desta vez me pareceu ver, não tenho certeza, em seus rostos sérios, fixando-me, uma pequena nuance de impaciência, algo assim como: claro que é para Burgos, onde está a avozinha.

Imaginando-se que fossem capazes de alguma pequena grosseria, poderiam estar pensando, talvez, não creio, lá dentro de si, ao mirar-me: haverá, por acaso, algum outro lugar no mundo para se passar as férias, que não seja Burgos, tonto?

Seja como for, eram tão graciosos que consegui sorrir.

Demorei-me três dias na Espanha. Passados trinta anos, quase não me recordo mais de nada. Aqueles lindos rostinhos, porém, totalmente alheios à minha aflição, ansiosos apenas pelos carinhos e bolos da vovó, pelos passeios de férias, não esqueci.

Porque, na vida, para as coisas ternas não existe olvido.  

              Esse pequeno texto é para tentar esquecer um pouco da nossa horrível política e lembrar que existem coisas lindas que não podem jamais ser esquecidas.

Redação

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