Para o dia do amigo: Meu Amigo Zé Grandão

 
Meu amigo Zé Grandão
Crônica de 22.06.2002
 
Em casa sempre fomos enjoados com o uso da palavra “amigo”. Dona Tereza passava uma reprimenda quando eu dizia que tinha ido jogar bola com meus “amigos”. “Companheiros”, explicava ela. Amigo, só seu pai.”
 
Mas com o Zé Grandão foi um caso de amigo à primeira vista. E dona Tereza nem se importou -aliás, adotou o Zé de imediato, porque ele veio com aquele jeitão desengonçado, dominando como poucos a arte de contar “causos”, e habitava uma república que tinha por animal de estimação uma jaguatirica. Quem não vai gostar de um cara desses? O Zé se apaixonou por minha família e por ela foi imediatamente adotado.
 
Coisa boa não éramos, admito. Prova é o dia em que fomos à boate Josi, a casa da inolvidável tia Jovita, eu com minha cara de seminarista, óculos e uma capa preta que tinha ganhado de presente da minha mãe. A estratégia consistia em o Zé me apresentar como seminarista filho de um rico fazendeiro recém-falecido, que estava em dúvida entre continuar no seminário ou cair na vida. A gente entraria na zona, o Zé falaria para alguma dama da noite me convencer a não voltar para o seminário. Ela viria à minha mesa, beberíamos e, na hora de pagar, apareceria um grandão, da turma do Zé, e se apresentaria como delegado de menores. Aí eu empalideceria, confessaria ser “de menor” -e tinha só 17 anos mesmo-, o “delegado” ameaçaria a todos de prisão e, para se ver livre do enrosco, as tias nos liberariam de pagar a conta.
 
Plano perfeito, muito bem-sucedido. Mas, como amigo que é amigo gosta de sacanear, para me desencaminhar, o Zé escolheu uma moreninha feia que nem a peste, incapaz de desencaminhar até padre norte-americano. Quando a moça chegou a minha mesa, fiz meu ar mais grave e perguntei: “Você frequenta missas?”. E ela, compungida: “Não”. “Então chama aquela loirinha ali, que tem jeito de quem frequenta.”
 
O Zé marcou época em Poços e em todas as cidades por que passou. Em Poços, nosso programa favorito era ir ao Bachianinha encher a cara e ouvir os “causos” do Zé. Em São Paulo, fazer o mesmo no bar do Alemão.
 
Além de presidente do Grêmio do Pelicano -o curso de química da maçonaria-, o Zé criou o jornal “A Retorta”, do qual era diretor, redator e repórter principal. Mas era tão bom redator que, logo que vim para São Paulo, indiquei-o para o Talvani Guedes, que estava começando a montar a reportagem da recém-reorganizada “Exame”. O Zé levou um susto. Estava em dúvida entre ser motorista de caminhão ou viajar a América Latina de moto, mas topou virar jornalista.
 
Provisoriamente, esclareceu.
 
Dali para diante, “provisoriamente” sua reputação foi crescendo, porque, com seu mais de 1m90, de tamanho não dava mais. Tornou-se o texto mais saboroso da imprensa, saiu de São Paulo para Campinas, depois para o Rio, Brasília, voltou a São Paulo, deixando em cada lugar legiões de amigos e admiradores.
 
Ficamos juntos a vida toda. Quando montamos uma espécie de “gueto” mineiro ali na rua Abílio Soares, onde morávamos, em apartamentos diferentes, eu e minha mulher, meus pais, sogros, irmãs, quem se mudou correndo para lá? O Zé com a Guida.
 
Ele é um radical terrível, que um dia quase brigou com o Fred Jorge, um senhor simpaticíssimo, indignado com as versões de música norte-americana que ele havia composto… 30 anos antes. “O acanalhamento da música brasileira começou ali”, justificou.
 
Passamos juntos pela ditadura, ingressamos juntos na democracia e começamos a ter divergências nos anos 90. Mas só políticas. Um dia o Zé me fez uma declaração que namorada nenhuma chegou perto: “Turco, acho que gosto tanto de você que até aceito essas suas idéias neoliberais”. E eu nem tinha aderido ao rock.
 
São 35 anos de amizade. Bebemos juntos, compartilhamos nossa dureza no início da vida paulistana, nossas amizades e implicâncias, procurei o seu ombro quando precisei, e ele quando precisou se valeu do meu.
 
Esta coluna era para falar do livro “Muita Sorte, Pouco Juízo”, que o jornalista José Roberto Alencar, o melhor repórter do país, está lançando, seu segundo livro, e, como o primeiro, uma delícia de texto. Fugi do assunto principal, porque só tem uma coisa melhor que o texto do Alencar: é a amizade do meu amigo Zé Grandão.
 
PS – Meu amigo Zé Grandão morreu alguns anos depois. Foi seu maior trote em nós. Tornou-se uma lembrança permanente.
Luis Nassif

10 Comentários

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    1. Puxa Vida, tanto tempo

      Puxa Vida, tanto tempo !!

      Pensei que fosse na semana passada.

      Nassif é um mestre. Vez por outra nos invade

      com suas histórias belissimas.

  1. A demonstração de amizade é

    A demonstração de amizade é algo muito valioso, fica uma espécie de vazio quando perdemos algum amigo com essas caracteristicas

  2. Quando Nassif escreve sobre o

    Quando Nassif escreve sobre o amigo Zé Grandão, o texto é puro carinho e afeição. É uma leitura saborosa.

     

  3. Esta crônica é pura emoção.

    Esta crônica é pura emoção. Da primeira vez, me apaixonei por ela e pelo Zé Grandão.

    Agora, reli é mais uma vez me emocionei.

    Por mim pode postar todo ano.

     

  4. Vale dizer que Zé Grandão,

    Vale dizer que Zé Grandão, além de amigo e grandão, também era um pedaço de homem. Mui belo.

    Adoro ouvir histórias de amizades sinceras, longevas como essa.

    Eu, por sorte, tenho amizades assim, que começaram na infância, adolescência, e permanecem até que a morte nos separa. 

    Bonita homenagem ao grande amigo. 

  5. Também já li essa página repleta de lirismo, algumas vezes.

    Estamos completamente em carne viva. Precisamos de amorosidades, até para nos abastecermos e abandonarmos esse ódio horrível que insistem em destilar em nós.

    Há mais de 10 anos sempre conclamava Nassif a escrever suas crônicas que, naquele tempo, vinham aos sábados.

    Somos ainda nós mesmos? Ou sugaram tudo de nós?

    Lindo canto lírico de uma amizade.

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