Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Ronald Golias, faz 10 anos, por Urariano Mota

Nesse domingo 27 de setembro, faz 10 anos que o grande humorista Ronald Golias não se encontra mais com a gente. Os mais jovens não sabem, o ensino nas escolas desconhece a história, naquele sentido mais básico de fazer uma continuidade humana através do tempo. Então os mais jovens perdem a graça do que foi um comediante, um ator magnífico, nascido e criado no Brasil. Daí que bem merece a recuperação do que publiquei quando Golias nos disse “vou ali” e não voltou, há 10 anos.

Permitam o que pode parecer um exagero: Ronald Golias foi o maior ator cômico do Brasil. Digamos de outra maneira: se o ator cômico é uma categoria mais alta que o ator dramático, digamos então esta consequência singela: Ronald Golias foi o maior ator do Brasil.

A prova, se prova há em terreno inseguro, a prova documental do que afirmamos seria o programa A Família Trapo, de 1967 a 1971. Para desgraça nossa, no entanto, toda a série, com exceção de raros minutos, sumiu no fogo e no incêndio da TV Record. Poderíamos tentar ainda assim ligar algumas pistas documentais, alguns indícios do que afirmamos, porque ele continuou a representar na televisão, no cinema até 2005. Melhor não. Melhor evitar esse caminho porque seria injusto para com a verve desse criador lembrá-lo nas últimas representações. O medíocre desses últimos papéis o coração da gente esquece.

Melhor vê-lo então sem documento físico, com a força do que ficou em nossa memória.

A Família Trapo era um programa, uma família classe média, que sem Ronald Golias no papel de Bronco seria a coisa mais tediosa que pode haver num aglomerado que se chama família. A sinopse do programa informa: “As confusões aprontadas pelo malandro Carlos Bronco Dinossauro, cunhado de Pepino Trapo, o patriarca da família. Além de infernizar o cunhado, Bronco infernizava também a vida dos sobrinhos, da irmã e do insólito mordomo Gordon, vivido por Jô Soares”.

Esse é o resumo. É menos que a sombra de um fantasma. Imaginem agora um indivíduo que não para em cena, que ao ouvir falas pacientes é impaciente, pisca sempre os olhos, que torce a boca, que se requebra, dá voltas no palco do teatro. Imaginaram? Imaginaram pouco. Imaginem um homem que modula a voz, que fala num sotaque caipira do interior de São Paulo, que distorce e cria palavras, corta sílabas, para melhor enfatizar a ignorância do personagem, que não recua diante de nada, de nada, nem diante do mais elementar ato de excreção dos intestinos, ainda que sem perder a elegância, se assim podemos nos referir a um indivíduo que se vestia à semelhança de Cantinflas.

Imaginaram? Imaginem agora um ator que em plena representação, em plena fala, sai do palco, some, com as mãos sobre o ventre e avisa: ‘Vou ali’. E deixa o pobre do coadjuvante sozinho diante da plateia, de um coadjuvante que era também um grande ator, e que por isso comentava com as mãos no nariz, para todo o público: ‘Ninguém suporta a peste’. Imaginem mais e acompanhem um pouco.

Um dos núcleos de comicidade no roteiro era o desprezo que Bronco dava ao trabalho, da fuga que mantinha a qualquer tentativa de fazê-lo ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Isso no roteiro. Mas era de uma imprevisão simples o que Ronald Golias fazia diante disso.

Por exemplo, quando estava absolutamente cercado, quando não possuía argumentos bons, convincentes, para deixar de viver à custa da beleza da irmã, ele, súbito, tinha febre. Dizia, a seu modo, com estremecimentos, e a levantar o paletó sujo até o pescoço: “Quê frio, que frio, quê friiiio’. E então, para que não morresse o homem, que caía e abria os olhos para o público, a família aceitava que o maldito ocioso voltasse a seu normal. Que era: viver na eterna dependência, com ares de alta classe média ao receber visitantes na casa, e com uma hipersensibilidade, com melindres finos a qualquer leve insinuação de que era um vadio.

Claro, nem por isso o conflito primário de que vivia sob o dinheiro do cunhado era resolvido. E por isso brigavam, o italiano que enriquecera no Brasil e o cunhado, que era uma despesa não prevista no casamento do italiano.

Brigavam, feio. Então começavam, num crescendo, os insultos.

– Pernachia. Parasita! – gritava-lhe o italiano.

Ao que voltava Ronald Golias, contra o passado heroico do bom italiano:

– Mussolini! Mussolini! –, e, insatisfeito, punha-se a cantar em falsete um hino fascista.

Então Pepino Trapo, o italiano, se acercava mais do ator à beira da histeria, ambos. E então vinha o que na memória é o ponto alto da imprevisibilidade do artista. O clímax, um orgasmo de apoteose: Ronald Golias caía num ataque apoplético, a debater-se, a babar-se, rolando em convulsões. Ele batia com a cabeça no palco e danava-se a bater no peito com os punhos, como se fosse um macaco no chão.

Acredito até hoje que os atores em cena deviam se perguntar, diante da epilepsia: “Será que desta vez é verdade?”.

Aliás, “liás”, como dizia o personagem a cruzar as pernas na sala, ao receber visitas, mui importante e educadamente, o seu improviso, o que no teatro chamam de “caco”, é um capítulo que torna pálida qualquer tese. Era ver, era sentir, era gozar o elementar da criação. Numa tosca frase, deveria ser dito que os seus improvisos eram mais que uma coautoria, como de resto é todo ato de interpretar. Os seus improvisos eram a própria criação.

Isso quer dizer, por um lado, que ele tornava cômico o que no roteiro apenas era risível. Por outro, que ele superava a dificuldade com uma descoberta, com um ser novo. Ora, em nenhum roteiro seria previsto que o ator tivesse disenteria em cena. Em nenhum seria possível prever o embaraço de Golias diante do galã famoso, que a cinco centímetros da beleza do rosto e da voz do galã, explodisse:

– Para, para com isso, desse jeito nem eu resisto!

Em nenhum texto seria possível o que ele fez com Pelé. O roteiro, é certo, dispunha que ele ignorasse o nome e o talento do jogador. Mas ele faz um achado, vejam: Golias se curva, não para saudar o rei, mas para bater com a cabeça no chão diante da ignorância do Rei, que nada sabe de jogar futebol. Golias se dobra, homem sábio que é da arte de jogar, porque não suporta mais a estupidez de Pelé diante do futebol. O idiota que faz papel de gênio, o ignorante que se julga sábio, que não aguenta a grande ignorância em torno de si, e por isto se curva, “irônico”, isso é simplesmente irresistível.

Há uma tendência na crítica, naquela que se julga mui genial e culta, a realizar sem que disso saiba o papel do Bronco de Ronald Golias, há uma corrente crítica que vê em Golias um tipo de humor ingênuo. Um quase primitivo. E isso, amigos, é apenas mais uma vitória da arte de representar, a própria reencarnação daquela frase latina que ensina “a melhor arte esconde a sua arte”.

Idiotas, sim, eram os seus últimos papéis. Mas ainda aqui, ainda assim, o velho artista, aos 76 anos, não se curvava, não se nivelava à precariedade burra, apesar dos vincos no rosto e da perda ágil dos movimentos. Caía, mas como dizê-lo?, caía no talento, mas sem um ataque apoplético. E que homem, qualquer artista, é o mesmo quando as energias enfraquecem, quando a luz do seu gênio entra em fade out?

Agora tentem, respeitáveis críticos, tentem ao menos em sonho algo como o Bronco em 1967, 1968, da Família Trapo. Tentem e verão de que natureza é feito esse humor ingênuo. Um gênio em papel de idiota, um dono do palco, dos atos, do improviso, um mestre da representação. Sem trombetas, a não ser as que mandava soar o idiota Bronco, daquelas que soam nas horas mais impróprias pelo baixo ventre durante uma conversação, de péssimo e imprevisível cheiro.

A lembrança que nos vem de Golias, na hora em que partiu, no dia dos santos Cosme e Damião, mistura-se com a nossa própria vida quando se anunciava o ano de 1968. Todos adolescentes amigos também vivíamos uma comédia, que para nós à época mais se assemelhava a um drama, uma tragédia. Talvez por isso todos fôssemos possuídos pelo desejo imenso de rir, de sorrir. Todos os sábados, tínhamos direito a uma hora de felicidade.

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

7 Comentários

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  1. “Ôcride, fala pra mãe!”

    Ronald Golias foi mesmo um excelente comediante, um mestre da improvisação e do jeito de corpo. Pena que não teve um bom diretor de cinema ou de TV que aproveitasse seu talento. Segue “Televisão (me deixou burro muito burro demais)”, dos Titãs, cujo refrão cita o bordão de Golias.

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=-XwMoG5P1U0%5D

     

  2. talvez a melhor do golias.

    1.969 morre costa e silva.

    assume um triunvirato: ministros da marinha, aeronautica e exercito.

    num programa, golias pega o telefone e liga para o alvorada:

    alô, quar o presidente que tá de prantão hoje.

  3. Incomparável. Rei da Alegria.
    Incomparável. Rei da Alegria. Inteligência impar. Saudades desse grande humorista, que conhecia como ninguem a alma humana. Grato ao Uriano por lembrar!

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