Rotina de um Doutrinador, por Jean Pierre Chauvin

Rotina de um Doutrinador, por Jean Pierre Chauvin

Quatro dias após o pleito eleitoral, decidido em fakenews e abstenções, véspera do Dia de Finados, será quiçá oportuno descrever, passo a passo, a rotina de um professor, digo, doutrinador de mentes inocentes da maior universidade da América Latina.

Este monstro acordou às 5h30, favorecido pelo despertador (aplicativo do celular). Às 5h55, tomou café com pão em um boteco e, vinte minutos depois, embarcou o ônibus que o levaria até o Butantã. Durante o trajeto de 50 minutos, continuou a ler Guerras Híbridas, recentemente publicado pela editora Expressão Popular.

Às 6h50, o doutrinador estava em frente a porta do edifício onde leciona, digo, doutrina. Aguardou cinco minutos até que uma das funcionárias terceirizadas destrancasse a porta de vidro. Agradeceu-lhe, desejou-lhe bom-dia.

Às 7h, o bicho-papão acessou o escaninho e de lá retirou alguma correspondência. Um minuto depois, estava na sala que divide com outros quatro colegas de ofício. Lá revisou os conteúdos da aula até aproximadamente as 7h45, quando chegou outro professor.

O monstro é educado: levantou-se da cadeira, cumprimentou o educador e voltou à sua tarefa. Hoje a aula se dividirá em falar sobre o romance machadiano e aplicar a primeira prova do semestre.

Às 7h55, chegou outro docente e os três trialogaram por cerca de 4 minutos e meio, até que cada um seguiu para a respectiva sala, onde praticariam feitiçaria e produziriam encantamentos outros em seus ingênuos educandos.

O monstro pegou a chave da sala, não sem antes preencher o formulário para a retirada do dispositivo dentado. Às 8h03 estava no local, tendo percorrido dois corredores e passado por entre os seus educandos.

Durante a aula, discutiu excertos de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880) e Dom Casmurro (1899), o que lhe permitiu relativizar as chamadas “duas fases” da obra de Machado e destacar as muitas referências a que os romances aludem.

Pontualmente às 9h40, Cérbero encerrou a primeira parte da aula expositiva. Combinou com os alunos que retornariam para a segunda parte do certame, para aplicação da prova, às 10h. Durante o intervalo de 19 minutos, não teve tempo de tomar café.

Pontualmente às 10h, o doutrinador retornou a sala de aula e, às 10h03, anotou o horário de início e encerramento da atividade. Por volta das 11h25, a última aluna entregou a sua avaliação dissertativa.

Encerrada a aula, deste momento em diante, os dois monitores (um de graduação; outra, da pós-graduação) permaneceram para conversar com o professor sobre as próximas etapas de seu trabalho e temeram pelos episódios, aparentemente tenebrosos, que se anunciam na universidade e fora dela.

(A despeito de ser monstrengo e doutrinador, a vida não está fácil nem mesmo para o capeta).

Às 11h55, o doutrinador correu até a cantina da própria faculdade para almoçar – o que fez em 22 minutos, enquanto conversava com um aluno que o avistou na fila para retirar bandejas.

Às 12h24, o orientador estava de volta à sala coletiva (que divide com outros espécimes monstruosos), para conversar com uma de suas orientandas de TCC. Pontualmente, a aluna chegou às 12h30. Para não atrapalhar a reunião dos colegas (na sala compartilhada) em andamento, sugeriu à orientanda que conversassem sobre a sua pesquisa (sem bolsa) na cantina da FEA. A certa altura, relembrando os eventos de domingo e a trajetória de sua vida, a jovem se emocionou. O monstro julgou que a melhor forma de acolhê-la seria ouvi-la sem interrupções.

Às 13h45, o doutrinador partiu em companhia da aluna até o prédio da Reitoria, onde teria a segunda reunião do dia (como jurado do Programa Nascente, avaliador da categoria Texto). Após 1h45 de reunião, em que a comissão indicou os finalistas do festival, o monstro retornou à unidade onde lecionara pela manhã, para a terceira reunião do dia, a saber: a comissão editorial de uma revista editada pelo programa de pós-graduação, nas Letras, ao qual está vinculado como orientador, pesquisador e docente.

Às 18h, encerrou-se a reunião com o colega com que divide a comissão (a outra professora não pode comparecer, porque, afinal, todos estão a acumular atividades para muito além do que se previa).

Às 18h10, convidou o colega para tomarem um chocolate com pão de queijo. Despediram-se às 18h45, aproximadamente. Um monstro seguiu em direção ao ponto da avenida Doutrinador Luciano Gualberto; a besta remanescente dirigiu-se ao ponto de ônibus da avenida Doutrinador Lúcio Martins Rodrigues.

Como perdera os dois ônibus que serviriam para metade do seu trajeto de volta à casa, chegou à avenida Paulista por volta das 20h. Jantou numa lanchonete do Conjunto Nacional. Pegou o segundo ônibus. E o terceiro, para descer a avenida onde mora.

Catorze horas e quarenta e cinto minutos depois, retornou a sua toca de 51 metros quadrados, forrada de livros, onde a televisão está quase sempre desligada, e o bar (debaixo do edifício) quase sempre burla os decibéis orientados pela lei do silêncio e os princípios da saudosa educação moral e cívica.

Decerto, a “nova era” chegou – como disseram aqueles alunos da mesma universidade onde leciona, digo, amedronta seus estudantes (especialmente aqueles que se inscrevem, avidamente, com o objetivo de cursar as disciplinas obrigatórias e optativas sob a sua nefasta responsabilidade).

A “ordem”, assim como a “lei” abrangerá a todos. Já tivemos excelentes amostras disso, quando vislumbramos as novas ameças daqueles que defendem a “Escola sem Partido”, que não seja a própria legenda que representam.

Mas não precisamos nos desesperar. Acabam de anunciar corte de 80% nas verbas para o Ensino Superior. Desse jeito, não sobrará nem demônio, nem doutrinador, nem funcionário, nem aluno, nem bedel, nem gatos ou cachorros, árvores, tubos de ensaio, lápis, compasso ou livro nos Campi.

Deve ser o custo da implementação da “ordem”, benéfica a muito poucos, a mando dos EUA, sob a articulação de estrategistas craques em guerras híbridas, mas desarticulados no que se refere ao saber e à fala.

Mas nem tudo está perdido. Porventura, se houver Educação dita Superior em 2019, possamos perguntar aos excelsos mantenedores dos lucros patrióticos, o que pode, ou não, ser discutido com os estudantes – dentro e/ou fora do ambiente de aula (território onde deveria imperar o debate a e liberdade de cátedra).

Pelo visto, apresentar os escritos filosóficos e econômicos de Karl Marx será algo proscrito, punível na “lei da mordaça”; mas o mesmo valerá para os ensaios sociológicos de Max Weber ou as teorias exclusivistas de von Mises? Ou “doutrinar” só se refere aos conteúdos “esquerdistas”?

Poderei comentar os livros do Velho e Novo Testamento? Ou serei acusado de proto-judaísmo, caso mencione a religião mosaica? Puxa… agora é que me ocorreu! Ao apresentar uma interpretação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, sugeri que o narrador se considera melhor que Moisés, o profeta que chegou um pouco antes de Cristo. Terei cometido infração?

Seremos um Estado teocrático, com maiores chances de fundamentalismo? O futuro parece nebuloso, de fato. Só não consulto quiromantes, tarólogos, astrólogos, numerólogos, jogadores de búzios, mães de santo, pombas-gira, pretos velhos, padres, bispos e pastores porque nem todos terão a palavra autorizada a me oferecer.

 

Redação

1 Comentário

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  1. Parabéns professor!

    Vivemos num mundo ao contrario. Os valores essenciais não são mais repassados às crianças. No Brasil da geração coca-cola para a geração xuxa foi necessario menos de uma década e o resultado esse desastre. 

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