Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Se a palavra acabar primeiro?, por Maíra Vasconcelos

Para o leitor Almeida.

Algo bastante inusual: eu vi uma ave jacu! Ele saltava de um galho a outro, e quando o fez com as suas duas finas pernas, apoiando as patas assim bem juntas cronometradas, ao pular esbanjou uma infantilidade tão travessa!, de um modo que talvez apenas uma criança fosse capaz de imitá-lo. E foi num festivo segundo que guardei comigo o real instante de observação e percepção daquela ave-jacu. E agora, ao tentar expor aquela imagem, tenho a humildade de saber que as palavras não desenham, não pintam, mas num esforço desmedido podemos conseguir traçar fissuras na imaginação do leitor, porque o leitor admirador de aves existe!, e é ele quem me faz hoje aqui lembrar e ressaltar a temperança bonita do andar-galar de uma ave que ficou em meu olhar.

E ao escrever sobre isto agora, percebo que se eu pudesse admirar a natureza, talvez escrevesse muitas coisas novas e adornadas pelas silhuetas do naturalmente. E até mesmo acho que seriam estes escritos muito úteis. A palavra pode conseguir transparecer a sensibilidade do vento ao bater nas asas de uma ave pequena ou grande demais, em patas que cambaleiam ou seguram-se em mestra firmeza, usando a palavra escrita para mostrar uma ave frígida pelo estrondo de um vento roçado abanado, ou contar sobre aquele pingo de vento que a fez mexer num desvio lento e pequeno. E se pensamos que o vento não pinga é porque esta pequena ave não fala, se ela falasse talvez nos dissesse o quanto o vento a aniquila em uma noite fria; poderíamos penetrar no jorro de ar que adentra suas finas penas plumas e coloridas firulas! E se apenas o vento é capaz de digeri-la quase viva, o que não fazemos nós, depredadores, pegando em aves como se fosse em ferro armado, matando aquilo que tão somente o vento já desvoa!

Mas quem sabe, ao usar a palavra-escrita que é de todos, assim a natureza poderá ser lembrada e compreendida – e hoje entre nós há um jacu e seu rabo espanador! – e talvez algum dia uma ave seja lida como se fosse um ser, se usarmos da palavra para dizê-la recitá-la cantá-la brincá-la, já que não desenvolvemos o domínio e a capacidade de ler-escutar outra língua senão esta monótona- tediosa comunicação de humanos com humanos. E fica tudo tão inútil em nós mesmos, se não podemos ver e aplaudir o pulo infantil de uma ave jacu!

Ah! gosto muito de dizer do silêncio contido em todo animal, neste silenciar em que eles captam nosso interior constantemente.., quando somos por eles atraídos, vamos quietos e mansos, dominados como se todo animal entendesse e pudesse ler em nós a humanidade de um respeitoso e desigual amor.

E se um leitor diz que com as palavras podem-se reviver as folhagens de uma estação vindoura, !e enfim temos a primavera!, talvez não seja muito esperar que a palavra invada a todos em um suplício pela natureza, tal como um animal berrando ao léu o parto desconjuntado.
E berram!, mas o mundo supõe que este nascer pode ser controlado remediado interrompido, como se algum nascer valesse menos, apenas.

Talvez, perceber a riqueza esvaída das vidas e mortes perenes dos ciclos da natureza, e observar o modo alienado e independente de todo viver animal, sem causa de danos a nenhum povo, talvez isto enchesse de constantes ensinamentos a vida material-batida das cidades impotentes, e apaziguasse nossos duros chãos e fortalecesse a nossa pouca capacidade de distração contemplativa sensível. Mas também sei que as pessoas não vão aludir à admiração e contemplação da natureza, também sei que elas acham que pensar é produtivo e o descanso da mente é improdutivo – ah, eu que devo desprezar tanto pensar para viver-escrever! E também acho que pessoas falando demais ao mesmo tempo tudo aquilo que sabem, elas erram tão desorientadamente que não seriam capazes de ver um suicídio coletivo naquilo que supostamente é uma algazarra conjunta. Então, inúteis!, nos desfazemos de nós mesmos em instantes que nem parecem ser de morte, vamos ficando murchos matando aquilo que mais vive e pulsa sem qualquer pretensão que não seja a de completar seus ciclos de vivência-sobrevivência e reprodução animal, interrompemos o esbanjar da vida simplificada em caça comida e renovação, estamos deixando rastros de extinção animal, e de que mais iremos sobreviver?, quando toda palavra seja pouco e insustentável.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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