Sobre homens-párias e pátrias-amadas, por Douglas Portari

Sobre homens-párias e pátrias-amadas

por Douglas Portari

“E o que acontece agora? Eu perguntei.

Mas não houve resposta, eles me deram as costas e deixaram a sala sem uma palavra. A porta continuava aberta. Eu estava livre para sair, ou para ficar e apodrecer, como eu quisesse. Ninguém falaria comigo ou olharia pra mim mais do que uma vez, o tempo suficiente pra ver o sinal na minha testa. Eu estava invísivel.”

Esse é o começo da provação de O Homem Invisível (To See the Invisible Man), conto do escritor norte-americano Robert Silverberg. Publicada pela primeira vez na revista de ficção científica Worlds of Tomorrow, em 1963, e, no Brasil, em uma coletânea do autor chamada Mutantes, a história não fala de invisibilidade literal, mas de um banimento dentro das próprias fronteiras, da atomização social em um futuro não muito distante – e nem tão distópico.

Por frieza para com seus semelhantes, um homem é condenado a um ano de “invisibilidade”, torna-se um pária, com quem nenhuma interação social é permitida. Um estigma em sua testa mostra a todos que ninguém pode falar com ele ou ajudá-lo de qualquer forma, sob pena da mesma punição. Ele vai aprender, então, que ser humano algum é uma ilha, e que sua arrogante autossuficiência e sua independência eram uma ilusão.

Silverberg, pra quem teve o prazer de lê-lo, é conhecido por uma ficção científica na qual tecnologias, alienígenas ou viagens no tempo são apenas paisagens, em que avanço técnico é só pano de fundo para abordar coisas humanas, demasiadamente humanas, como amor, misantropia, prisões políticas, canibalismo… Uma velha verdade da boa ficção científica: não importa quão longe o futuro ou o planeta, ela fala sobre nós, aqui e agora.

Ubuntu e alienação

E desde que 2020 se tornou… 2020, esse conto me vem à cabeça com alguma frequência. Não pelo fato de, como o homem invisível, muitos de nós termos nos dado conta de que somos, afinal, animais gregários, mas ao contrário, por nos mostrarmos, nas circunstâncias, gangrenados, seres cuja imagética hipertrofiada, nossa coleção de avatares em praias e baladas – feita quase sempre da exploração de um outro tipo de invisíveis – não poder cessar.

O homem-pária de Silverberg é reincorporado. “Eu era um humano novamente”, desabafou ao ter sua posição no corpo social reassumida. Engano, ele só vai encontrar sua verdadeira humanidade em um ato de empatia desinteressada, de altruísmo imediatamente punido. Ele descobre, enfim, a alteridade como extensão de si mesmo, ubuntu, em que “eu sou porque nós somos”, em que a dor e a alegria do outro são as suas também.

Nós, imagem invertida, buscamos alienação. Nossa revolta contra a solidão é mesquinha, feita de um hedonismo necrófilo, de uma pulsão de morte que se sabe ininputável. Somos gregários, desde que seja sob a velha ordem, pátria-amada-salve-salve, a que determina quem é humano e quem é invisível. Nossa distopia sartriana de todos os dias, um huis clos em que o inferno são os outros que não estão lá para nos servir.

Redação

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