Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Uma tarde em novembro de 1998, por Rui Daher

por Rui Daher

Este texto é dedicado a Dona Marisa Letícia Lula da Silva e todas as valentes mulheres do ABC paulista que conheci.

Durante minha vida profissional mantive laços fortes e duradouros com o ABC paulista e suas extensões municipais. Passei quase 25 anos deslocando-me de São Paulo, onde moro, para trabalhar lá. Conheci sua gente, estudei suas origens, entendi seus hábitos, deliciei-me com sua combatividade operária quando ela foi necessária. Existe literatura a respeito. Sugiro.

No momento, muito se escreveu sobre Marisa. Muito melhor do que eu, ao acionar a AK-47 verbal, em 26 de janeiro, neste GGN, logo que percebi um ódio absurdo crescer entre maus brasileiros.

Somente hoje, no entanto, consegui sair da letargia e do desânimo. Entre os piores momentos escroto-esgoto dos três últimos anos, a morte de Marisa explodiu como símbolo em mim de uma grandeza perdida. Fez-me acordar um fato ocorrido 18 anos atrás.

No dia 13 de novembro de 1998, uma das maiores empresas de fertilizantes do Brasil, onde eu era diretor-geral, pediu concordata por efeito de não ter participado do processo de privatização. Perdeu competitividade. Quem é do ramo conhece a história.

Sem nunca ter sido acionista, dono ou coisa que o valha, mas diretor estatutário, assalariado e concessor de avais e fianças perdi meu patrimônio e enfrentei sozinho duas situações. Tinha 53 anos e estava no auge de minha carreira.

A primeira foi uma tentativa de acordo com bancos e fornecedores. Em reunião com representantes de mais de 30 credores, fui trucidado. Nenhum acionista, dono, conselheiro, diretor de área (a maioria se mandou antes que a bomba estourasse) presentes. Apenas o advogado de falências, que não abriu a boca. O futuro revelaria ter ele suas razõe$$$. Lembro-me que diretor de um banco alemão tentou me agredir fisicamente. Alegava saber das posições “private” que os donos mantinham no exterior. Pior, com o próprio banco que ele representava, um exemplo do quanto o empresariado brasileiro pode ser burro ou folgado.

Mas, e a eterna primeira-dama da República, Dona Marisa Letícia Lula da Silva, por quê? É a segunda parte do meu novembro de 1998.

Desde 1980, minha vida havia sido entre escritórios e fábricas em São Paulo, Santo André e Mauá. Saía cedo, voltava tarde, o que me fez conhecer os desvios, em todos os sentidos, do trajeto, assim como as pessoas. Os vivos hão de lembrar, os falecidos me esperam para um rodízio de carnes.

Frustrado o acordo com os credores (ah, alemão, espero que você tenha adquirido uma enorme e incurável espinha no ânus), a concordata foi decretada. O pagamento dos salários ficou atrasado e o pessoal da fábrica parou. O Sindicato dos Químicos do ABC pôs seus caminhões e alto-falantes na porta. Pedia posição da empresa. Ninguém entrava ou saía.

Sozinho, repito, mais uma vez sozinho, fui para lá e tive uma reunião com a diretoria do sindicato. Pedi um tempo. Lembro-me da face de seus membros, do que falei, e de termos combinado, no prazo de sete dias, realizar uma assembleia com presença de todos os funcionários, na sede do sindicato, em Santo André. Até lá, voltariam ao trabalho (pouco).

Consegui amenizar o clima ao falar que poderiam contar com meu esforço e comprometimento, pois tínhamos as mesmas posições políticas e partidárias, o que era e ainda hoje é verdade. Nelas incluí minha admiração por Lula e as mulheres do ABC.

No dia da assembleia, na mesa apenas eu e dois diretores do sindicato à frente de cerca de 500 empregados.

Não precisei ser apresentado. Todos me conheciam. Viam-me passear pela fábrica, capacete sempre mal encaixado na cabeça, ao lado dos gerentes e supervisores. Tomei a palavra, expliquei os motivos da concordata e garanti-lhes que, de todas as formas, faria o possível para a continuidade da empresa e, mesmo que não o conseguisse, garantia que eles receberiam o pagamento de todos os seus direitos.

Por dentro, resistia aos medos. De vômito, tremor nas pernas e mãos, falar não convincente, indeciso. E se eu nada pudesse e mentia-lhes?

Foi quando um senhor, negro, barba grisalha, sotaque nordestino, peão antigo na empresa, seu Agenor, levantou-se da cadeira de plástico e me interrompeu:

– Seu Rui, mas quando virá o pagamento? Até lá, como ficam Dona Marisa e os quatro bacuris lá de casa?

Devo ter feito alguma promessa, dado uma data incerta. Quieto não poderia ficar. Mas a Marisa e os quatro bacuris ficaram dias martelando o lado esquerdo de minha cabeça.

Com a ajuda da pressão do sindicato, consegui do Comissário e do Juiz a liberação dos FGTS já depositados para que eles fossem vivendo até a volta da operação normal na empresa.

Não deu. Na época ainda não existia a figura da recuperação judicial. Depois de algum tempo, consegui arrendar a fábrica para outra empresa, que manteve a maioria dos empregados.

Em 2001, depois de eu conhecer todos os meandros corruptos do Judiciário brasileiro, a falência foi decretada e ferrado fiquei (história para um “Dominó de Botequim” com os amigos).

Tenho certeza de que a Marisa do Agenor e do Lula são as mesmas. Que suas forças ajudaram a construir a exuberância do ABC paulista e que todas elas, assim que chegassem ao Palácio do Planalto, agiriam exatamente como fez Dona Marisa Letícia Lula da Silva.

Fico honrado de ter conhecido tantas Donas Marisas assim, camponesas guerrilheiras e manequins “locas por ti America”.

     

 

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

12 Comentários

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  1. Boa,
     
    só não entendo um

    Boa,

     

    só não entendo um troço: por que ninguem expõe os meandros corruptos do judiciario barsileiro? Sim, por que politicos são execrados, policiais são execrados, várias classe são execradas como corruptas e algumas saem impunes.

    1. boa….

      Que esteja no céu. Abençoada são todas as mães. Mas Dona Marisa parece que teve uma vida extraordinária, da tragédia pessoal, da periferia da periferia da periferia de São Paulo para o Palácio do Planalto. Mulher do Presidente da República. Muitas considerações, mas e daí? Onde está o país prometido há 40 anos, por socialistas socializantes e anticapitalistas extremamente capitalizados? O tratamernto no Sirio Libanês é um dos melhores do Mundo. E todas as Marisas do país que tiveram AVC e esperaram por dias na fila do SUS para uma internação? Inclusive a minha. Muitos textos, muitas palavras mas a febre amarela assola o país, mais de um século depois de Oswaldo Cruz e o Brasil continua a mesma pocilga depois de 1/4 de século de governos progressistas socializantes de centro esquerda. Então, novamente que Deus a tenha, mas milhares de Marisas estão nas filas do SUS. A vida continua, cuidemos dos vivos. abs.  

      1. Ze,  primeiro que sua Marisa

        Ze,  primeiro que sua Marisa saia urgente da fila do SUS e receba o tratamento que necessita. Tanto ela como todas as Marisas, Marias, Josés, Antonios e particularmente os inonimados que habitam a margem de nossa sociedade desumana e hipócrita, que aceita a plutocracia atendida no Sirio porque tem direito divino e os despossuidos não tem nem o SUS,  a isso não fazem jus. E quando alguém de baixo, que por vontade de um negócio que chamam de Democracia é eleito presidente da Republica, como Lula e Dilma, se botar o pé no Sirio provoca uma onda de piração coletiva pela “invasão” do espaço a eles, os donos do mundo, reservado por divino direito. Só não vejo onde está o 1/4 de século de governos de centro esquerda. Apenas Lula e Dilma tiveram o olho voltado para fortalecimento do SUS, e conseguiram muito sim, mas não o suficiente, bastando lembrar que a extinção do CPMF foi um grande golpe contra a política de saude dos dos Presidentes.

        1. Luís H e Eduardo,

          é de uma ignorância ululante esse posicionamento que se exige de presidentes da República, ou mesmo outras autoridades. O cargo permite e exige cuidados médicos diferenciados pela importância, do que representa na Instituição uma perda assim. Mais: no caso de Lula seu convênio, assim como o meu, permite atendimento lá. Indicar-lhes o SUS não passa de tolice do mesmo calibre de quem, no Brasil, levanta cartazes em apoio a Trump. Abraços

      2. “socialistas socializantes e anticapitalistas”

         

         “Socialistas socializantes e anticapitalistas”, há quarenta anos atrás, estavam lutando pela própria sobrevivência física, e duvido que algum deles fosse “extremamente capitalizado”. Lembremos que “quarenta anos atrás” foi, aproximadamente, quando morreu Vladimir Herzog. Um quarto de século (25 anos) de “governos progressistas socializantes de centro-esquerda”? Itamar Franco socializou algum meio de produção? Fernando Henrique Cardoso? Estritamente, nem Lula e Dilma socializaram alguma coisa.

         

         Carga tributária não é socialismo, carga tributária é só carga tributária. Se quisermos um paraíso com carga tributária zero, podemos tentar viver como o Homem de Neanderthal. O problema é que não existe mais terra sem dono…

         

    2. É estranho, ,mesmo, Naldo

      O achaque é desavergonhado, sobretudo, com empresas grandes e de imenso patrimônio. A que eu me referi faturava US$ 200 milhões/ano antes de quebrar. Abraço.

  2. De molhar os olhos, caro Rui

    De molhar os olhos, caro Rui !  E uma, só uma, discordância: Nenhum, repito, nenhum artigo sobre Marisa supera o seu de 26 de janeiro. Igual sim, melhor não, sem qualquer desmerecimento a tantos escritos sobre a querida Marisa que hoje não é mais só do Lula, mas de todos nós. E mantenha a pena afiada e a AK-47 carregada, é um alento.

  3. As Formiguinhas Anônimas e Invisíveis da Revolução

    Camarada Wlassow

    (Brecht)

     

    Esta é a nossa camarada Wlassowa, boa lutadora,
    dedicada, astuta e firme.
    Firme na luta, astuta contra nossos inimigos e dedicada
    na agitação. Seu trabalho é miúdo,
    tenaz e imprescindível.

    Onde quer que lute não está só.
    Como ela lutam tenazes, firmes e astutas
    em Twer, Glasgow, Lyon e Chicago,
    Changai e Calcutá.
    Todas as Wlassowas, de todo o mundo, boas formigas,
    soldados invisíveis da revolução.
    Imprescindíveis.

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