Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Vestido de mulher, por Maíra Vasconcelos

Vestido de mulher, por Maíra Vasconcelos

A mulher de vestido como sendo a realidade do seu mundo exterior, mas nunca a exposição das suas subjetividades. E sem o vestido, assim ao se des(cons)truir internamente, logo ela precisará acolher-se na realidade externa e escolherá um novo vestido. O vestido como objeto e símbolo, por ora, desprezível e chulo, ao se tratar da imagem exterior e delimitar o vasto feminino, ou seja, restringindo-se apenas à sua realidade comprovável, longe de alcançar a irrealidade sem solução lógica que é o feminino visto sem o vestido. A mulher fora do vestido está fadada ao ato de se revigorar e se (re)construir por ela mesma e junto à sua singularidade.

A tarefa da escrita e a sua incessante busca pela palavra podem ser comparadas a imprecisão do vestido no corpo de uma mulher. As forças ambivalentes de construção e desconstrução, em estado de exposição e acobertamento, são, portanto, uma interrogativa constante sobre aquilo que está presente e logo se ausenta, como em cada tentativa e conclusão de escrita, como também em toda situação fugitiva que é a do corpo da mulher diante do vestido.

A mulher deseja a retirada do vestido. Ela pedirá que daquele vestido se desfaçam, também alguém um outro deve retirá-lo e esquecer o olhar viciado na moldura-imagem da mulher de vestido. E essa sombra vestida será apenas um arquétipo, onde não há então unicidade de ser. O desejo de ser reconhecida e vista está assegurado num estado talvez compatível ao solúvel tempo, isso que se perde no esquecimento, se o vestido é colocado e retirado quantas vezes incalculável e ininterruptamente por ela mesma. Quando tudo passou por ali mas morreu e por isso acontece. O não-verificável, mas insinuado como ação a ser sempre percorrida, ou ação que já se fez e não deixou rastro. Como ser vista e não-vista, ao mesmo tempo, pela consciência do outro, essa consciência de ver e não ver. E nesse entretempo reluz a presente falta, aquela ausência, assinalando a inconsciência escapada.

A mulher pertence à falta de realidade conjunta ao estar sem o vestido, mas considerando-se que tal veste dela nunca se desfaz, posto que sempre retorna, assim, tem-se a junção inevitável com o real que é como a palavra encontrada, escrita e lida, como ter a comunicação acertada. Mas sempre em histriônica alternância, o vestido que está sempre no corpo e também é logo retirado, e assim sucessivamente, como se nunca encontrara a face exata de si mesma. Vista sempre na alternância entre realidade e irrealidade, real e virtual, comunicação e in-comunicação do corpo que se mantém e se desmorona, sendo construção e ruína, segundo a presença ou não do vestido – como a palavra que está e não-está, lida e não-lida.

Ao desejar se despir, na possibilidade palpável das coisas, o feminino assim se expõe para além de qualquer possível agarramento da realidade de si mesma, quando suas diversas interioridades entrelaçadas de espessuras, funduras e larguras ficam evidentes e também nunca definidas.

Inevitavelmente, o feminino irá alterar o vestido e aumentar as suas possibilidades de arranjo no tempo desarmônico, se todo vestido é desarmonia no corpo da mulher. Prosseguirá entre os estados que permitem apreender e se desgarrar, passando pela superfície e profundidade, realidade e irrealidade, emoção e razão: sempre num transitório entre o êxtase e a ruína histéricas de se alterar segundo o desejo inalcançável de capturar a si mesma. O inevitável vestido retornará camuflando as interioridades e enganando sobre os possíveis reflexos do seu corpo.

A cada vestir e desvestir, marcas assombram o corpo da mulher que precisará se revelar em outra, considerando-se que nas marcas estão guardadas as impressões e imagens passadas e também as marcas absolutamente esquecidas. Ao tirar e colocar o vestido, como se o corpo se sobrepusesse a si mesmo numa luta e resistência entre os tempos inconclusos da realidade e da irrealidade, do real e do virtual. Como procurar a palavra, ao encontrá-la perceber também que já se tem sua presente falta, e logo voltar a revelar outra nova palavra a ser escrita amanhã.

Nessa busca atemporal a intenção falida em sonhar com o corpo no cotidiano sofá, sem conseguir chegar, visto que nem o sonho nem o sofá poderão ser alcançados sem que logo se desgarrem para palpitar movimentos ao corpo. Os movimentos ininterruptos do corpo, cheio de fugas de razão e emoção, indissociáveis de sua estrutura, marcam esse indivíduo que sempre pertencerá ao fazer da arte no desejo absurdo por alcançar a duração no tempo, que é o contrário da morte. Ainda que o corpo sempre esteja a quebrar-se e a (re)destruir-se em fragmentados instantes, como alternando-se entre ser parte do espetáculo e ser o espectador do teatro.

A mulher, entre estar e não estar com o vestido, pode ver e não-ver a si mesma, ao mesmo tempo e com distanciamento, como se do assento do teatro estivesse a olhar o palco, como se diante de um espelho duplicado e alterado, mantendo-se assim sempre absolutamente acordada e em movimento – longe do sofá e dos sonhos de se aquietar.

Posto que a imagem da mulher com e sem o vestido pode alcançar tanto a realidade como a irrealidade, o real e o virtual, o desejo da mulher por sua própria imagem sem-vestido não pode ser extirpado, como seria possível acontecer com qualquer outro desejo se dotado for de sabedoria. Porque o corpo sem-vestido é o desejo dela por ela mesma, o desejo que a constitui e a satisfaz, ainda que momentaneamente, na sistemática incompletude de ser – um desejo estruturado ainda pela necessidade do outro, o vestir e desvestir-se está sempre entremeado por intervenções do externo que representa a possibilidade de comunicação em sentido de sobrevivência do indivíduo em conjunto com o todo.

Como a palavra que apenas se concretiza se dotada de comunicação, e em uma percepção anterior e primária não pode ser mais que a sua própria incomunicabilidade, esse estado também concreto que a fará ressurgir para a comunicação com o outro – a palavra também à disposição servil do outro que a despirá ao ser lida e entendida ou não entendida. Se apenas o outro pode reconhecer e escancarar a possibilidade de aproximação ao que ela é, seja a mulher e o vestido, seja o escritor e a palavra, ambos se definirão pelos transitórios estados de realidade e irrealidade, do real e virtual, da comunicação e in-comunicação.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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