Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A globalização do “salve-se quem puder” em “Nove Rainhas”

O filme argentino “Nove Rainhas” (Nueve Reinas, 2000) do falecido diretor Fábian Bielinsky continua ainda desconhecido no Brasil. Embora reflita o colapso econômico argentino do final da década de 1990 e a amoralidade que a corrupção e a inflação estariam provocando na cultura nacional, permanece bem atual. O impacto mundial (nos EUA mereceu um remake de qualidade bem inferior) da saga de dois anti-heróis trambiqueiros que descobrem que, na verdade, a própria sociedade é feita de pequenos e grandes golpes, fez Bielinsky afirmar que o sucesso do filme simbolizaria “a globalização do salve-se quem puder”. Provavelmente porque Bielinsky explora dois grandes arquétipos da literatura e do cinema: o “Pícaro” e o “Trickster”.

 

“Nove Rainhas” (Nueve Reinas, 2000) se tornou um dos mais aclamados filmes argentinos recentes. Quase não foi visto no Brasil, renegado apenas a festivais e obscuras exibições. Nos EUA fez tanto sucesso que rendeu um remake com qualidade inferior chamado “171” (Criminal, 2004).

À primeira vista o filme se trata de mais uma estória de anti-heróis, pobres diabos que vivem de pequenos golpes na espera de encontrar a oportunidade de aplicar a grande e definitiva trapaça que o faça subir na vida e ser respeitado por todos. Mas há algo de perturbador no roteiro escrito e dirigido por Fábian Bielinsky: e se esse pobre diabo descobrir que, na verdade, a sociedade inteira é formada por anti-heróis e que jogos e trapaças já fazem parte da rotina de todos os níveis sociais, das ruas até as instituições? E se a sociabilidade for uma ficção necessária para encobrir esta realidade crua?

Toda a narrativa do filme se passa nas ruas e lugares públicos em Buenos Aires (bares, restaurantes e saguões de hotéis) em um espaço de tempo de pouco mais de 24 horas, da madrugada até a manhã do dia seguinte.

Marcos (Ricardo Darín) e Juan (Gaston Paulus) vivem de pequenos trambiques até encontrarem-se por acaso em um golpe malogrado em uma loja de conveniência. Tornam-se sócios em uma oportunidade que Marcos chama de “uma oportunidade em um milhão”: uma milionária negociação com um milionário espanhol envolvendo uma série de selos raríssimos falsificados, as “nove rainhas” do título. O negócio tem que ser realizado imediatamente, custe o que custar, já que o milionário deixará a cidade na manhã do dia seguinte. Enquanto o experiente golpista Marcos ensina ao jovem e inexperiente Juan os segredos do “ofício”, conta com a ajuda da irmã Valéria (Letícia Bredice) que trabalha no hotel onde o espanhol está hospedado. Mas questões familiares pendentes azedam a relação com a irmã, dificultando ainda mais o golpe milionário.

O interessante na narrativa é que a cada passo dessa jornada eles encontram outros ladrões e farsantes, o que torna Buenos Aires numa selva onde ninguém está livre de sua pequena ou grande parcela de corrupção. Cada revelação encobre outra mentira e cada promessa conduz a um novo golpe. A única certeza que o espectador tem é que nada é o que parece ser, até um surpreendente final.

De imediato chamam a atenção o ritmo frenético e a fotografia despojada. Além disso, como em todo bom filme de anti-heróis, consegue atrair a simpatia do público se igualando a filmes do calibre de “Butch Cassidy”, “Os Bons Companheiros” e “Os Suspeitos”. 

A primeira leitura sobre o filme é que ele é um reflexo do colapso econômico argentino no final da década de 1990 após o corrupto governo Carlos Menem e um ambiente de sucessivos pacotes econômicos, desemprego e crescimento da criminalidade urbana. O filme expressaria essa percepção de amoralidade e desaparecimento da fronteira entre o bem e o mal que a inflação e corrupção estariam produzindo na cultura nacional. Mas o que impressionou o próprio diretor Bielinsky é que a identificação com esse sentimento não foi apenas na Argentina: “O mais curioso é que pude comprovar que as pessoas de outras grandes cidades do mundo também se identificam com esse sentimento. Há uma certa globalização do ‘salve-se quem puder’” (“Nueve Reinas, La Varita Del Guante Blanco” disponível em http://www.clubcultura.com/clubcine/nuevereinas/nuevereinas2.htm).

O Anti-herói: pícaros e “tricksters”

No universo narrativo a figura do anti-herói é associada tanto ao chamado personagem picaresco como ao “trickster”.

Na história da literatura o Pícaro é o típico personagem de romances e novelas surgidos na Espanha no século XVII e XVIII com características atuais daquilo que chamamos de malandragem: amoralidade e pragmatismo onde a astúcia é colocada a serviço de interesses da sobrevivência e busca de vantagens egoístas.

As “Nove Rainhas”

Não se confunde com o Trickster (do francês “triche” ou “tricherie” – trapaça, furto, engano), uma pluralidade de personagens encontrados em diferentes culturas, mas que partilham de um mesmo conteúdo arquetípico: o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os. Enquadra-se no gênero literário da Farsa onde os papéis sociais invertem-se e a ordem social é contestada.

No cinema, o Pícaro possui duas funções bem claras: trazer um alívio cômico à narrativa e, como companheiro desastrado do herói, abrir os olhos do protagonista para a natureza humana. Do burrinho amigo do Sherek ao robô companheiro de Lucky Skywaker em “Star Wars” vemos personagens cômicos, covardes e potencialmente corruptíveis.

Porém, em “Nove Rainhas” vemos a amoralidade e o pragmatismo do Pícaro se espalhar em metástase na sociedade Argentina, como fala o experiente Marcos em mais uma lição ao inexperiente Juan:

“Quer ver ladrões? Venha. Aqueles dois… esperando alguém com a maleta do lado da rua. Aquele… está marcando ponto para uma vítima. Estão aí, mas não os vê. É disto que se trata. Estão, mas não estão. Então cuide de sua maleta, sua valise, sua porta… sua janela, seu carro, suas economias. Cuide do seu rabo. Porque estão aí e vão estar sempre. Ladrões. Não… isso é como os chamam. São marreteiros, violadores, corruptos, valentes… larápios, putas, simuladores, batedores, boêmios, escutas… arrebatadores, trombadinha, operadores, ladrões…”

Fabio Bielinsky tem um olhar desesperançado para a sociedade Argentina: das ruas até um banco que quebra a certa altura do filme deixando uma série de correntistas, inclusive o golpista Marcos, desesperados esmurrando as portas, tudo exala a corrupção, mentiras e reveses.

Fascínio ou identificação pelo anti-herói?

Os anti-heróis de “Nove Rainhas” criam nos espectadores muito mais identificação do que fascínio. Quando Bielinsky se diz surpreendido com essa mesma percepção em outros grandes centros urbanos do mundo onde o filme foi exibido, acaba confirmando o efeito globalizante da narrativa. Se no anti-herói trickster nos encontramos fascinados ao ver um personagem que inverte os papéis sociais e contesta criticamente a ordem, no pícaro apenas nos identificamos com o demasiadamente humano.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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