A história do vaqueiro que virou mulher

O dia 21 de agosto de 1966 ficou marcado para sempre no povoado de Lajes, em Alagoas, perto de Palmeira dos Índios. Um fato inusitado foi o estopim da rumorosa reviravolta na vida dos viventes do lugar: José João, um vaqueiro de 19 anos, trabalhador na vida dura rural, farreador, dançador nos forrós, adepto de jogar o carteado, dera a luz sozinho, no meio do mato. Encontrado por parentes, quase desfalecido, foi levado para casa com o filho inesperado, pois nem ele sabia que estava grávido:

Tinha visto neste mundo

Muita coisa acontecer,

Aqui mesmo Brasil

Já se fez até chover,

Mas um homem dar a luz

Jamais eu pensei de ver.

                                    

O episódio logo tomou as páginas dos jornais e em São Paulo o velho e bom Notícias Populares dedicou uma série de matérias sobre o assunto. Revelou-se que João José era na verdade Joana da Conceição, uma menina que, obrigada pela mãe, passou a vestir-se e a comportar-se como homem. Mesmo quando vieram os sinais da feminilidade, seios e menstruação, o vaqueiro não se revelou. Usava duas camisas apertadas para esconder os seios e não se resguardava dos trabalhos pesados.

 

Também nunca respeitava

Nenhum trabalho pesado,

Era homem na enxada,

Foice, extrovenga e machado,

E no lombo de um cavalo

No campo dava o recado.

 

E assim correu a vida até aparecer-lhe no coração a paixão pelo colega Neuto Jiló, de 17 anos. Nem assim, abriu a guarda. Confessou que havia conquistado autonomia de vida como homem e não queria perder a sua liberdade. O caso ficou conhecido nas páginas do Notícias Populares como a História do Homem-Mãe. Ao tomar conhecimento do ocorrido, o poeta Manoel D’Almeida Filho o passou para as sextilhas do cordel e ofereceu-lhe o título de O Vaqueiro Que Virou Mulher E Deu A Luz. 

 

José João abriu os olhos,

Foi avistando um menino,

Compreendeu que mudava

Nessa hora o seu destino

De homem para mulher.

Teve o maior desatino…

 

Alguns pensaram que o poema fora inspirado na pena de João Guimarães Rosa, em Diadorim, ou mesmo que fora uma transcriação da lenda de Joana D’Arc ou da heroína brasileira Maria Quitéria. O poeta, porém, apenas narrava o fato verídico, cumprindo sua missão de arauto do povo na escrita de mais um cordel circunstancial. Manoel D’Almeida não temia a história real, aproveitava-a para, lançando-lhe alguma alegoria, transformá-la em sucesso cordelístico.

 

Estou muito satisfeita

Por descobrir a verdade

Do meu estado de vida

Na sexualidade,

Cumprindo o dever de mãe

Na lei da maternidade.

 

Lançado pela Prelúdio, no mesmo ano do fato acontecido, trazia capa em quatro cores, produzida por Sérgio Lima, o mesmo que quadrinizaria O Pavão Misterioso. Curiosamente o folheto trazia apenas 16 páginas, diferente das 32 usuais na produção da editora.O poema cobre apenas 10 página, com 39 estrofes, a última em acróstico ALMEIDA. Outra curiosidade é o editorial que aparece na última página, com o título Você Deve Ler?!, incentivado a leitura: “…Mas a pedra básica da educação ainda repousa sobre os livros.”

 

A vida tem muita coisa,

Lendo tudo é que se sabe,

Mentira nunca valeu,

Em canto nenhum não cabe,

Isso é uma realidade,

Deus mostra a luz da verdade,

Até que a mentira acabe.

 

Redação

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  1. Essa estória foi usada como

    Essa estória foi usada como inspiração por Sérgio Ricardo e Carlos Drummond de Andrade no espetáculo “A Estória de João Joana”. O cordel musical foi originalmente orquestrado por Radamés Gnattali.

    “Meu irmão o sucedido
    Em Lages do Caldeirão
    É caso de muito ensino
    Merecedor de atenção
    Por isso é que me apresento
    Fazendo esta relação

    Vivia em dito arraial
    No país das Alagoas
    Um rapaz chamado João
    Cuja força era das boas
    Pra sujigar burro bravo
    Tigres onças e leoas

    João, lhe deram este nome
    Não foi de letra em cartório
    Pois sua mãe e seu pai
    Viviam de peditório
    Gente assim do miserê
    Nunca soube o que é casório.

    Ficou sendo João pois esse
    É nome de qualquer um
    Não carece escogitar
    Pedir a doutor nenhum
    Que a sentença vem do céu
    Não de lá do Barzabum

    De pequeno ficou órfão
    Criado por seus dois manos
    Foi logo para o trabalho
    Com muitos outros fulanos
    O seu muque sem mentira
    Era o de três muçulmanos

    Na enxada quem que vencia
    Aquele tico de gente
    No boteco se ele entrava
    Pra bochechar aguardente
    O saudavam com respeito
    – Deus lhe salve meu parente

    João moço não enjeitava
    Parada com sertanejo
    Podiam brincar com ele
    Sem carregar no gracejo
    Dizia que homem covarde
    Não é cabra é percevejo

    Num dia de calor desses
    Que tacam fogo no agreste
    João suava que suava
    Sem despir a sua veste,
    – Companheiro esta camisa
    Não é coisa que moleste?

    Lhe perguntou um amigo
    Que estava de peito nu
    E João se calado estava
    Nem deu pio de nambu
    Ninguém nunca viu seu pelo
    Nem por traz do murundu.

    João era muito avexado
    Na hora de tomar banho
    Punha tranca no barraco
    Fugindo a qualquer estranho
    Em Lages nenhum varão
    Tinha recato tamanho.

    João nas últimas semanas
    Entrou a sofrer de inchaço
    Mesmo assim arranca toco
    Sem se carpir de cansaço
    Um dia não guenta mais
    E exclama: o que é que eu faço

    Os manos vendo naquilo
    Coisa mei desimportante
    Logo receitam de araque
    Meizinha sem variante
    Para qualquer macacoa
    Carece tomar purgante

    João entrou no purgativo
    Louco de dor e de medo
    Se estorcendo e contorcendo
    Na solidão do arvoredo
    Pois ele em sua aflição
    Lá se escondera bem cedo

    O gemido que exalava
    Do peito de João sozinho
    Alertou os seus dois manos
    Que foram ver de mansinho
    Como é que aquele bravo
    Se tornara tão fraquinho

    No chão de terra essa terra
    Que a todos nós vai comer
    Chorava uma criancinha
    Acabada de nascer
    E João de peito desnudo
    Acarinhava este ser

    Aquela cena imprevista
    Causou a maior surpresa
    O que tanto se ocultara
    Se mostrava sem defesa
    João deixara de ser João
    Por força da natureza

    A mulher surgia nele
    Ao mesmo tempo que o filho
    Tal qual se brotassem junto
    A espiga com o pé de milho
    Ou como bala que estoura
    Sem se puxar o gatilho.

    Se os manos levaram susto
    Até eu que apenas conto
    E o povo todo assuntando
    A história ponto por ponto
    Ficou em breve inteirado
    Do que aí vai sem desconto.

    Nem menino nem menina
    Era João quando nasceu
    Sua mãe sem saber ao certo
    O nome de João lhe deu
    Dizendo – vai vestir calça
    E não saia que nem eu

    À proporção que crescia
    Feito animal na campina
    Em João foi-se acentuando
    A condição feminina
    Mas ele jamais quis ser
    Tratado feito menina

    Pois nesse triste povoado
    E cem léguas ao redor
    Ser homem não é vantagem
    Mas ser mulher é pior
    Quem vê claro já conclui:
    De dois males o menor.

    Homem é grão de poeira
    Na estrada sem horizonte.
    Mulher nem chega a ser isso
    E tem de baixar a fronte
    Ante as ruindades da vida
    De altura maior que um monte

    A sorte se presenteia
    A todos doença e fome
    Para as mulheres capricha
    Num privilégio sem nome
    Colhe miséria maior
    E diz à coitada – tome.

    É forma de escravidão
    A infinita pobreza
    Mas duas vezes escrava
    É a mulher com certeza
    Pois escrava de um escravo
    Pode haver maior dureza?

    Por isso aquela mocinha
    Fez tudo para iludir
    Aos outros e ao seu destino
    Mas rola não é tapir
    E chega lá um momento
    Da natureza explodir.

    João vira Joana, acontecem
    Dessas coisas sem preceito
    No seu colo está Joãozinho
    Mamando leite de peito
    Pelo menos este aqui
    De ser homem tem direito.

    De ser homem de escolher
    O seu próprio sofrimento
    E de escrever com peixeira
    A lei do seu mandamento
    Quando, à falta de outra lei
    Ou eu fujo ou arrebento

    Joana desiste de tudo
    Que ganhara por mentira
    Sabe que agora lhe resta
    Apenas do saco a embira
    E nem mesmo lhe aproveita
    Esta minha pobre lira.

    Saibam quantos deste caso
    Houverem ciência que a vida
    Não anda em favor e graça
    Igualmente repartida
    E que amor ensombra a falta
    De amor de paz e comida.

    Meu amigo meu irmão
    Eu nada te peço a ti
    Senão me ouvir com paciência
    De Minas ao Piauí
    Tendo contado o meu conto
    Adeus me despeço aqui”

    Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Elba Ramalho, Sérgio Ricardo & Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional de Brasilia.

    http://www.youtube.com/watch?v=k9s4G4cPsp8

    http://www.youtube.com/watch?v=pIG60_tr8BU

    Sérgio Ricardo

    http://www.youtube.com/watch?v=ZvES5yQRuKI

    Link: http://www.vagalume.com.br/sergio-ricardo/estoria-de-joao-joana.html#ixzz39tsi43mN

     

  2. Lembro muito dessa história e

    Lembro muito dessa história e da machete do Notícias Populares, “O homem que virou mãe”.

    Na época, com 10 anos, fui atrás e descobri que ele/ela poderia ser hermafrodita e até fiz um trabalho para a escola com este tema.

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