Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A morte é uma mercadoria em “A Pequena Loja de Suicídios”

De forma despretensiosa através de muito humor negro e cinismo, a animação francesa “A Pequena Loja de Suicídio” (Le Magasin des Suicides, 2012) de Patrice Laconte nos faz pensar em uma questão fundamental para a História da Cultura: por que  o suicídio foi sempre objeto de tabus religiosos e repressão ao longo da História? Talvez porque nesse momento derradeiro da vida do indivíduo se exponha de forma dramática as mazelas da sociedade. Na animação de Laconte é a crise europeia e a forma como a ideologia dos negócios consegue ver a infelicidade e o desespero como mais uma oportunidade de mercado.

“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental de filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou dez categorias, vem depois. São apenas jogos: primeiro é necessário responder.” (Albert Camus)

A obra de estreia do cineasta frances Patrice Leconte em filmes de animação, “A Pequena Loja de Suicídios” pode ser considerado um produto cultural reflexo do imaginário europeu atual de um continente imerso na crise econômica. Como explicita o filme, “os franceses já não riem”.

Tudo se passa em uma cidade triste e depressiva, onde ninguém mais se diverte. Os dias são sempre cinzentos, as ruas com um trânsito confuso e congestionado cercado por enormes prédios com pequenas janelas, enquanto nas calçadas as pessoas se arrastam desanimadas. Algumas se jogam diante do primeiro carro que veem ou se atiram dos prédios mais altos.

Mas o suicídio não é permitido pelo Estado, pelo menos não em lugares públicos. Quem se mata publicamente recebe de imediato um recibo de multa que é colocado no corpo: os familiares pagarão a pesada multa… ou o próprio suicida, se for mal sucedido.

Apenas um único negócio prospera: a loja de artigos para suicidas, a Casa Tuvache, que oferece para os clientes “uma morte requintada”, tendo como lema “ajudá-lo a morrer é a nossa felicidade”.

“Se sua vida foi um fracasso, pelo menos a morte será um sucesso”, fala a certa altura o impagável Mishima, dono do estabelecimento. Ele, sua esposa Lucrèce e seus filhos Vincente e Marilyn tocam o negócio que vai de vento em popa: forcas, venenos, facas, espadas, rochas amarradas em correntes e afins, de acordo com o gosto do cliente.

Mas tudo mudará com a chegada do terceiro filho, Allan, que para azar da família Tuvache é sorridente e com um semblante cheio de vida e pensamentos positivos. Um contraste com o aroma de morte tão desejado pela família para os negócios. Junto com um minoritário grupo de crianças também alegres, criará confusões e arquitetará um plano anárquico para mudar o deprimente estado de coisas, tentando provar que a vida não deve ser levada tão à sério para todos serem tão tristes.

Suicídio consumista

Baseado no livro homônimo de Jean Teulé, a animação é composta por vários musicais, em um tom narrativo que lembra muito “A Noiva Cadáver” de Tim Burton. Muito humor negro e linhas de diálogo politicamente incorretas. Leconte é feliz ao associar o tema do suicídio pela crise econômica e de valores a uma loja que paradoxalmente exacerba o desejo por consumismo ao oferecer formas requintadas de morte para que, pelo menos, esse momento seja um sucesso depois de uma vida de fracassos.

Mas o mote principal da “Pequena Loja de Suicídios” é a cínica visão ideológica de que a crise é um momento de oportunidades e de empreendedorismo. Morte e suicídio são transformados em mercadorias por uma necessidade muito simples que está implícita na narrativa: com um Estado vigilante evitando que as pessoas se matem, o suicídio tem que ter 100% de eficácia e sem possibilidade de falhas ou de sequelas que poderiam deixar a vida pior do que já está. Tem que ser rápido e, ao mesmo tempo, espetacular.

Pela lógica do sistema econômico de mercado, um objeto só pode ter valor se for escasso. Essa é a condição essencial para que qualquer coisa seja transformada em mercadoria com um valor que seja rentável para quem o comercializa. A morte é a saída mais desejada nesse triste mundo alternativo e que, por isso mesmo, é impedida ou dificultada pelo Estado. Por isso, o suicídio transforma-se em mercadoria que é habilmente explorada pela “Pequena Loja de Suicídios”.

Uma história social do suicídio

Em toda a História o suicídio foi marcado ou como tabu religioso ou forma de controle e distinção social. Por exemplo, tanto em Roma como Atenas adotou-se diferentes atitudes em relação ao suicídio de acordo com a classe social: legitimava-se o suicídio do senhor, enquanto era condenado quando o escravo se matava. Era considerado uma afronta à autoridade do senhorio. Como um cidadão livre, com o suicídio o senhor exercia sobre si mesmo o direito próprio de sua condição pública amparada pela lei. 

Ora tolerado, ora reprimido, será com os primeiros séculos da Era Cristã que será totalmente condenado no século V por Santo Agostinho e o Concílio de Arles (452 D.C.), para culminar com a condenação e todas as formas de suicídio no “Decret de Gratien”, compêndio de Direito Canônico do século XIII. Matar-se era atentar contra Deus, o único que criou o homem e que, por isso, teria o direito de mata-lo. A vida deixa de ser um patrimônio humano para se tornar divino. Suicidas são igualados ladrões e assassinos e combatidos pela Igreja e Estado.

A partir da Revolução Francesa, o suicídio passa não mais a ser condenado ou reprimido, mas considerado como algo clandestino, tóxico, patológico e contagioso. Já estamos aqui no campo que o filósofo francês Michel Foucault descrevia as formas de biopoder e controles capilarizados na sociedade a partir do discurso médico da patologia. Discursos que irão controlar as formas legítimas de viver (ou de estender artificialmente a vida por meio da tecnologia invasiva hospitalar) e de morrer.

         Olhando a História em perspectiva, é no suicídio que encontramos a forma mais radical de reivindicação do direito individual, onde incidem as formas de controle e poder: distinção de classe social, tabu religioso, controle do Estado e, finalmente, como patologia a ser tratada.

Suicídio e mercado

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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